Meu encontro com Rubem Alves e a força para “transbordar”
“20 de outubro de 2001, 7h45, Campo Grande, Auditório do Colégio Dom Bosco. Aguardava com grande expectativa a palestra do psicanalista, escritor e educador Rubem Alves. Como faltavam ainda alguns minutos, quis fumar um último cigarrinho antes da palestra; encontrei uma ampla sacada ajardinada, que dava para o pátio do colégio. Saboreando meu vício maldito, ali me ocorreu uma das raras vantagens de ser fumante: olhei para o lado e lá estava o próprio convidado, observando o ambiente, sozinho, com exclusividade para mim”.
Este relato originalmente compôs o último texto da minha tese de doutorado (1), que defendi em 2002. Retomo aqui com um excerto daquele escrito porque considero um momento oportuno e necessário para revisitar a “força de vida” de Rubem Alves e um de seus grandes inspiradores: Nietzsche.
“Havia tempo que eu tinha uma grande curiosidade sobre um detalhe em sua obra: a referência intensa e carinhosa a Nietzsche (2). Estava com a questão no bolso do colete para apresentá-la após a palestra, no debate. Mas estávamos ali, lado a lado, e eu não queria perder essa oportunidade singular. Apaguei o cigarro, aproximei-me, cumprimentamo-nos e comecei ‘quebrando o gelo’ com algumas de suas paixões – falamos sobre jardinagem e culinária. No momento oportuno, coloquei a questão.
Com o entusiasmo e a ênfase que lhe são peculiares, Rubem Alves argumentou que sente em Nietzsche uma força de vida extraordinária. Explicou que, quando Nietzsche descobre sua doença e sente estar caminhando para a morte, esta vontade de viver fica ainda mais evidente em seus escritos. Alertou sobre as traduções em que o Übermensch leva o significado de ‘super-homem’ ou ‘além-do-homem’ quando, segundo o seu entendimento, a tradução mais correta seria ‘homem transbordante’, que age não a partir daquilo que a sociedade cristalizou como moral, mas a partir da sua própria riqueza e exuberância. O ‘homem transbordante’ faz de sua vida uma permanente luta, inconformado, em oposição à moral do escravo e a do rebanho.
Fascinado com sua argumentação, fui ainda mais eufórico para o auditório, convencido de que, mais uma vez, nessa oportunidade, Rubem Alves não plantou uma semente, mas plantou esperança“.
É inegável a força de vida inspirada por esses pensadores: Alves e Nietzsche.
Em 2018, abrimos uma página sombria de nossa história. Decorrência de vários episódios estranhos desde atos de 2013, passando pelos desastres promovidos pela Lava-jato, a criminalização da política e o processo de impeachment de Dilma, a onda de extrema-direita levou ao poder o excrementíssimo presidente atual. A partir de 1º de janeiro de 2019, a vida brasileira tornou-se um pesadelo constante: cortes de recursos em todas as áreas essenciais, falência das políticas públicas em defesa dos segmentos fragilizados, ataques à imprensa e aos jornalistas, agressão às instituições republicanas. Ao acessar o noticiário, a população (aquela que não fica restrita às redes sociais) acostumou-se a termos como fake news, negacionismo científico, revisionismo histórico, atos antidemocráticos, familícia, Micheque, gabinete do ódio, centrão, desmatamento e queimadas ilegais, invasão de mineradores a terras indígenas, offshore, volta da inflação, desvalorização do real…
Com o anúncio da pandemia do novo corona vírus agravou-se o quadro – que temos pavor de relembrar e repetir aqui. Mas é preciso: movimento antivacinas, antimáscaras, atraso na aquisição de vacinas, mais de 600 mil mortes – centenas de milhares evitáveis. CPI da Covid, que transformou-se em luz de esperanças ao expor mazelas e revelar a latrina de corrupção instalada no Planalto Central. Que Brasil é esse, nos lembra Cazuza.
Pensadores progressistas e alguns comunicadores de “pés no chão” nos ajudam a compreender este momento obscuro. Como já escreveu Mário Magalhães (3), 2018 está longe de terminar.
Esta é a luta de nossas vidas. Por isso, renovo minhas esperanças e energias buscando inspiração em Rubem Alves e Nietzsche. Teremos que ser transbordantes, ter a força de vida para virar essa página de nossa história.
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(1) Tese defendida na Escola de Comunicações e Artes da USP, depois publicada em livro pela Edufms/Edusc (2005) e pela Labcom Livros (2013).
(2) Friedrich Wilhelm Nietzsche (Röcken, Reino da Prússia, 15/10/1844 – Weimar, Império Alemão, 25/08/1900) foi um filósofo, filólogo, crítico cultural, poeta e compositor. Escreveu vários textos criticando a religião, a moral, a cultura contemporânea, filosofia e ciência, exibindo uma predileção por metáfora, ironia e aforismo.
(3) MAGALHÃES, Mário. Sobre lutas e lágrimas: uma biografia de 2018. Rio de Janeiro: Record, 2019.
Publicado originalmente em Ijuim Shinbum, em 27/11/2021