Boaventura de Sousa Santos em retrato preto e branco
Conheci Boaventura de Sousa Santos pessoalmente em dezembro de 2012. Fui apresentado a seus escritos mais de dez anos antes, durante o doutorado na Escola de Comunicações e Artes da USP. Com a oportunidade de cumprir estágio pós-doutoral em Coimbra, decidi examinar sua obra para verificar como suas ideias poderiam me ajudar a compreender o Jornalismo. Mais que isso, queria observar suas falas, seus olhares, seus gestos, sentir um pouco mais seu mod’ser. Aquele ano letivo europeu (2012-2013) foi fascinante, não só no aprendizado acadêmico, mas também para entender o que é ser brasileiro (embora em Portugal me confundiam com chino).
Já nos congressos que participei em Portugal e Espanha, as contribuições do autor começaram a emergir, a colaborar para a elaboração de minhas argumentações na crítica aos modelos jornalísticos que me dispus a construir. No retorno ao Brasil, seus livros passaram a ocupar lugar de destaque em minha biblioteca e referência relevante em trabalhos para congressos e artigos de revistas científicas. Passei a ofertar disciplinas na pós-graduação que propunham refletir sobre seu pensamento para a compreensão do Jornalismo. Publicamos uma coletânea de ensaios com base em suas ideias. Tais reflexões propiciaram a criação do Grupo de Estudos Jornalismo e Direitos Humanos (DHJor).
Soco no estômago – Primeiro o UOL, depois outros órgãos de imprensa. A notícia sobre o escândalo em Coimbra trouxe choque, indignação, frustração. O artigo que deu origem às denúncias de assédio sexual e extrativismo intelectual é avassalador, perturbador.
The walls spoke when no one else would
Publicado numa revista britânica, a riqueza de detalhes sobre o drama vivido por muitas mulheres – que deveriam ser acolhidas e orientadas para o melhor estudo – fere os olhos e a alma do leitor minimamente sensível. Uma agressão à inteligência de quem optou por estudar seus textos, como foi meu caso. Noites mal dormidas. Um soco no estômago!
E daí, a casa caiu? Natalia Timerman escreveu um artigo bem interessante para o Universo UOL.
O que fazer com livros e textos escritos por intelectuais assediadores?
Do começo ao fim, a colunista faz questionamentos, provoca, incita. Finaliza de maneira genial:
– Como mudar?
– A mudança é individual, coletiva ou ambas?
– O cancelamento favorece a mudança ou opera segundo a mesma lógica do que cancela?
– Que bom seria ter todas essas respostas.
Eu também não tenho respostas a todas as questões que me fiz desde aquele fatídico 11 de abril. O que eu sei é que não posso me envergonhar de ter acreditado na hipótese de o pensamento de Boaventura colaborar para a melhor compreensão do Jornalismo. Não posso me envergonhar de ter levado minhas reflexões a artigos, disciplinas que ministrei, livro que publicamos, alunos que orientei. Mas tenho consciência de que não sou seu cúmplice. Seus livros não estão mais no primeiro plano de minha biblioteca. Foram para a quinta estante. Vou recorrer a eles? Ainda não sei se vou e, se sim, como.
Cancelamento total e imediato? Talvez não! Tento acreditar que as investigações na Universidade de Coimbra aconteçam com apurações sérias e transparentes.
Fazendo um retrospecto, penso: o que vou fazer da noção de razão indolente? do pensamento abissal? da sociologia das ausências e das emergências? Boaventura me abriu portas, caminhos para conhecer pensadores dos estudos decoloniais, para encontrar Frantz Fanon, Anibal Quijano, Maldonado-Torres. Inspirou meu diálogo com Edward Said, Silvio Almeida, Lélia Gonzalez, Abdias Nascimento.
Tenho esposa e uma filha de 25 anos. Não admito assédio sexual a elas como não admito a qualquer pessoa. Também considero reprovável qualquer forma de apropriação intelectual – no meu entender uma atitude tão grave quanto o assédio. Eu continuo “do outro lado da linha abissal”.
O esforço, lá em 2012, para olhar nos olhos de Boaventura não me permitiram imaginar tal situação. O fato é que a sua imagem, antes em quatro cores, agora está esmaecida… e não passa de um retrato em preto e branco – em alto contraste.
Como gosta de escrever Ricardo Kotscho, vida que segue… com serenidade, senso crítico e vigilância.
Publicado originalmente no blog Ijuim Shinbum.