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  • Ao Jair, com frio e à distância de mil quilômetros, um obituário

    Ao Jair, com frio e à distância de mil quilômetros, um obituário

    A notícia da passagem de Jair vinda de Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, a princípio, não comoveu a ponto de fazer alguém assumir publicamente a queda de uma lágrima pelo patriarca da família André. O vértice de sensibilidade partiu do primogênito, José Carlos, de 58 anos, que, resignado, comprometeu-se a acender uma vela para que a alma daquele ex-motorista profissional pudesse encontrar uma via menos tortuosa no itinerário desconhecido. A barreira geográfica de quase mil quilômetros entre a capital onde o mineiro de São Sebastião do Paraíso passou a maior parte da vida e Curitiba, no Paraná, era, ao fim e ao cabo, a menor distância entre o finado e a parte da família que precisou migrar de cidade em cidade ao longo da década de 1970, em alguns momentos em situação de penúria, até se fixar na capital paranaense no início dos anos 1980.

    Aquele 30 de maio — uma terça-feira cinza cuja tarde, de acordo com o Simepar, o órgão que produz informações meteorológicas no Paraná, registrou 16 graus, a menor temperatura naquela faixa horária do dia até a publicação deste texto — parecia o cenário propício para a frivolidade que o recado da morte daquele estranho homem de 81 anos, vítima de infarto, significava à parentela de pés vermelhos, pele calejada e olhos acimentados.

    Conversas no grupo de mensagens instantâneas da família afugentavam a ideia de luto; alguns não teceram comentário ou sequer um emoji. Quem se pronunciou, relembrou as três raras vezes que Jair foi visto desde meados dos anos 1970, época em que rompeu laços com esta parte da família. Depois, as trocas de mensagem versaram sobre um cuidado até certo ponto exagerado em compartilhar o aviso com Emília, de 76 anos, mãe-solo dos quatro filhos oriundos da relação; sem qualquer reviravolta na narrativa, ela reagiria ao comunicado com indiferença, certo deboche, e finalizou com seu bordão mais famoso: “Ficaram com medo de me contar porque acharam que eu ainda gosto dele. Faça ideia”.

    Por fim, houve ainda tempo para alguns impropérios. Eles não serão registrados neste preâmbulo, pois poderiam ofender o direito à honra, à privacidade e ou à imagem da personalidade post mortem, garantias estas previstas no Código Civil (art. 12). Por mais erros que Jair tenha cometido, este texto não é uma vingança, e sim uma tentativa de conhecê-lo e humanizá-lo, sem romantizá-lo. Há de transparecer, portanto, a existência dos comentários hostis apenas para que o leitor ou a leitora entenda as fissuras na relação, desde que não se revelem detalhes fatídicos que pouco ou nada interessam.

    O início da história que realmente importa

    Jair André e Emília Balduíno se conheceram no início dos anos 1960 no interior do Paraná, especificamente, em Jacutinga, um distrito do município de Ivaiporã, criado em 1961 e cuja maior característica é a existência de uma terra tão vermelha quanto ferida em início de cicatrização. Casaram-se em 26 de dezembro de 1962 e tiveram três meninos: José Carlos, Luiz Carlos e Maurício, nascidos entre 1964 e 1969. A caçula, Cleuzeli, a Nena, viria ao mundo três anos mais tarde, quando a família já morava em Cornélio Procópio, também no interior paranaense. Nesse meio tempo, Jair e, pouco depois, Emília e a prole passaram cerca de um ano em Curitiba.

    As mudanças constantes não foram uma característica singular da família. O relatório Relações entre as alterações históricas na dinâmica demográfica brasileira e os impactos decorrentes do processo de envelhecimento da população, produzido, em 2016, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revela que o país viveu uma das mais intensas transições demográficas do planeta ao longo do século XX. O contexto de modernização, acentuado na década de 1960, provocou a naturalização de uma série de violações de direitos humanos, ligadas ao acesso à moradia, à educação, ao trabalho infantil, à saúde e à segurança pública, para citar alguns exemplos que impactaram em maior ou menor grau a biografia dos protagonistas desta história. Se, a título de ilustração, para cada habitante que vivia em regiões urbanizadas no início dos anos 1930 existiam quatro que ocupavam áreas rurais, em meio século essa proporção foi invertida. Entende-se o quanto este movimento foi denso quando ele é confrontado com outras realidades: para ter uma transformação demográfica similar, aponta o mesmo estudo, a França demorou pouco mais de duzentos anos.

    A vinda de Jair para Curitiba, em 1969, carregava contornos um pouco distintos da maioria das pessoas que viveram naquela conjuntura. Decerto até tenha passado pela cabeça daquele homem, que começou a trabalhar como motorista de ônibus na cidade à época com quase 870 mil habitantes e em plena expansão, que a capital traria oportunidades, mas, segundo os relatos coletados para este texto, o que mais influenciou na vinda foi a existência de uma amante, a Sebastiana, curiosamente, xará da mãe de Jair. “Ele me deixou com as crianças e fugiu com essa Tiana. Ela era muito bonita. Passou um tempo e eu vim atrás. Eu morria de amor por ele. Faça ideia”, lembra Emília com gracejo, “E eu vim porque ele prometeu largar dela”.

    Da ascensão à fuga

    O fator infidelidade, aliás, teria influenciado no retorno no ano seguinte ao interior do estado, onde a família viveria por quatro anos com alguma prosperidade, e em todo o desfecho da história. “Quando a gente foi para Cornélio Procópio, o pai trabalhou primeiro como motorista de ônibus. Depois comprou um caminhão e virou ‘gato’, que era como o pessoal chamava os responsáveis por selecionar e transportar o pessoal para lidar nas lavouras de soja”, relembra José Carlos, que se recorda com certo orgulho de ajudar, por volta dos oito ou nove anos, na organização dos pagamentos aos trabalhadores rurais. “Nessa época eu era a mulher do ‘gato’”, completa Emília, antes de confidenciar: “Tomava conta do dinheiro. Algumas vezes peguei dinheiro escondida e guardei porque ele não me dava nada”.

    Ao que tudo indica, o caixa paralelo foi residual na contabilidade. O período foi tão promissor que Jair pôde comprar um segundo caminhão e contratar um ajudante para conduzir o novo veículo. Ele acumulava dinheiro e mulheres. “Tinha a Maria Perna Torta, que a gente chamava assim porque mancava, e tinha a Maria Grilo, que a gente chamava assim porque era bem magrinha”, lista a ex-esposa.

    A vida seguia nesse ritmo até que uma guinada ocorreu: num domingo, na volta de um torneio de futebol, o condutor auxiliar, que estaria bêbado, atropelou gravemente uma mulher. Os custos da internação ficaram para o proprietário do veículo. “Quando ele viu que o negócio ia ficar muito pesado, vendeu os caminhões, deixou a mãe, eu e as outras crianças morando lá e fugiu para Campo Grande”, conta o filho mais velho ao explicar que, na época, era “comum que quem fizesse bobagem fugisse para” o ainda “estado de Mato Grosso” — Mato Grosso do Sul só seria criado em 1977.

    De acordo com Emília, a vítima do atropelamento fez diversas cirurgias e teve que amputar as pernas. Mesmo assim, não teria sobrevivido em decorrência de complicações — ou talvez pela falta de atendimento hospitalar adequado por conta da inadimplência de Jair? Nunca se saberá. O que se sabe é que o Sistema Único de Saúde só seria criado em 1988 pela Constituição Cidadã e que, antes disso, saúde não era uma obrigação do Estado.

    Maria Perna Torta o acompanhou na fuga, enquanto os filhos e a então esposa, que às pressas começou a fazer faxinas, permaneceram no Paraná. A matriarca afirma que nem sempre recebia o combinado pela atividade informal. “A gente chegou a ficar sem alimento. Não tinha comida dentro das latas”, relembra.

    “Nos fundos da casa tinha uma horta de verdura e o Zé Carlos começou a montar umas cestas, daí saía e vendia na rua. Ele me perguntava: ‘O que tá faltando hoje, mãe?’ Aí um dia ele pegava o dinheiro e comprava um açúcar; no outro dia perguntava de novo, aí trazia café ou arroz…”.

    Emília Balduíno

    “Eu vendia tanto as verduras que tinham no quintal de casa, que eram poucas, quanto as produzidas por uma outra pessoa que tinha uma horta comercial”, reforça José Carlos ou Zé Carlos, ou, mais raramente, Zecote, variações usadas por Emília para se referir ao filho mais velho. Luiz Carlos, o Major, segundo filho do casal, três anos mais novo e à época com 6 anos, ajudava.

    O apelido que o acompanha desde a primeira infância foi dado devido à admiração que a criança demonstrava pelo responsável pela segurança do distrito de Jacutinga. Naquelas brincadeiras repetitivas que os adultos fazem com os pequenos, as pessoas perguntavam o que o Luiz Carlos gostaria de ser quando adulto. “Quero ser majó, majó…”, respondia. Pedreiro de mão cheia, há vários anos Major intercala fases em que foca no ofício profissional com momentos de desilusão — ou seria uma fuga? — em que é capaz de permutar da camisa no corpo a algo de alguém alheio.

    O resgate

    Passado um tempo que nenhuma memória conseguiu precisar, Jair voltou na calada da noite para buscar a família. “Ele me avisou um tempo antes: ‘Dá um jeito de vender a casa’. Aí me disse o valor que era pra vender. Eu peguei uma parcela e quando fui pegar a outra, o comprador disse que não ia pagar porque sabia que a gente estava fugindo, e fez chantagem que ia denunciar. Aí não recebi o dinheiro”, conta Emília.

    Todos migraram para Campo Grande. Apesar de ter ido, lá ela resolveu se separar. Conheceu um novo homem, Fernando, com quem foi morar em Ribas do Rio Pardo, distante 100 quilômetros de Campo Grande. O novo casal, que ficou junto por poucos meses, foi lidar em uma área de plantio de eucalipto, setor do agronegócio que, segundo informações do site Potencial Florestal, desenvolveu-se em grande escala justamente a partir da década de 1960, período em que recebeu alguns incentivos fiscais. Segundo dados publicados em 2020 pelo IBGE, atualmente, Mato Grosso do Sul é o principal exportador de celulose do país e reúne os quatro primeiros municípios com maior área plantada de eucalipto do país: Ribas do Rio Pardo é o segundo na lista, atrás apenas de Três Lagoas.

    Ranking dos municípios com maiores áreas de florestas plantadas

    PosiçãoMunicípiosEucalipto (ha)Pinus (ha) e outrasTOTAL (ha)
    1Três Lagoas (MS)263.9210263.921
    2Ribas do Rio Pardo (MS)218.1302.870221.000
    3Água Clara (MS)134.478264134.742
    4Brasilândia (MS)133.9590133.959
    5João Pinheiro (MG)108.2500108.250
    6Selvíria (MS)89.859089.859
    7Caravelas (BA)89.728091.100
    8Buritizeiro (MG)82.500382.503
    9Encruzilhada do Sul (RS)28.00047.96075.960
    10Itamarandiba (MG)71.500071.500
    Fonte: Agência IBGE (2021, adaptado)

    Os filhos acompanharam a mãe, com exceção do mais velho, que permaneceu com o pai, mas agora em Bandeirantes, município distante 58 quilômetros da capital sul-mato-grossense, onde Jair trabalharia nos dois anos seguintes como taxista. “Foi por causa da escola. A mãe não tinha ideia do que ia encontrar na cidade nova. Então, por segurança, eu fui transferido de Campo Grande para terminar o ano escolar”, lembra ao citar que há algo bom que guarda do pai: “Ele sempre me incentivou a estudar”. Não à toa, ele foi a primeira pessoa a concluir um curso superior na família. Formou-se em Administração pela Universidade Federal do Paraná, em 1998.

    “Lá, com uns 13 anos eu dirigia um opala e uma rural”, relembra orgulhoso. Enquanto isso, Emília, em Ribas do Rio Pardo, engravidou outra vez — Jair chegaria a afirmar, incrédulo, que teria sido vítima de uma traição, algo repudiado pela ex-esposa. Ela, que não chegou a frequentar um ano na escola, conseguiu juntar certo dinheiro e comprou, às cegas, uma casa em Ouro Verde do Piquiri, na região sudoeste do Paraná.

    “Quando acabou o ano escolar, a mãe passou para me buscar em Bandeirantes e voltamos para o interior do Paraná. Só que a casa era um barraco precário e, para piorar, já existia um proprietário”, conta José Carlos. “Era uma casa de madeira só com uma peça”, complementa Emília. Ao ver uma mulher com quatro filhos, grávida do quinto, e enganada, o posseiro permitiu, mediante pagamento, que a família ficasse no casebre. “Tive que pagar duas vezes por essa casa”, lembra. Mesmo gestante, ela e os dois filhos mais velhos foram por um tempo boias-frias. Em 1978, uma menina chorou pela primeira vez no cômodo único da casinhola, mas foi entregue ainda com três dias a uma família da região com condições de cuidá-la:

    “Ou eu ficava com o bebê ou trabalhava para comprar comida para os outros. Eu não tive escolha”.

    Emília Balduíno

    Quem também não teve opção para conviver com o pai biológico e frequentar a escola foram Maurício e Nena, os caçulas, que neste período da história tinham, respectivamente, 9 e 6 anos. Ele cresceu e se tornou, como Major, pedreiro. Dependente químico, o filho preferido — mas nunca admitido pela matriarca — foi assassinado no final de 2005 por dívidas com traficantes. Já Nena enfrentou graves problemas emocionais ao longo da vida. Chegou a ser internada por três vezes na transição entre adolescência e início da vida adulta em manicômios. Como a Lei da Reforma Psiquiátrica (nº 10.216/01), que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, só foi sancionada em 2001, ela enfrentou alguns tratamentos desumanos. Após muitos anos sem cuidado adequado para esquizofrenia, hoje toma medicação controlada.

    Outras fugas

    Ainda em Ouro Verde do Piquiri, Emília alugou uma peça e montou um bar para aumentar a renda. “Só que vinham uns caras que bebiam e não pagavam. Tinha que fazer comida de graça, faça ideia, ficavam ameaçando, quebravam as lâmpadas”, relembra. Foi por isso que ela e os filhos migraram outra vez para o distrito de Jacutinga, local onde esta história havia começado mais de uma década e meia antes. Lá, trabalhou nas lavouras de café e milho e conheceu Joaquim. “Aquilo era um diabo”, lembra séria, “Ele dizia: ‘Agora você é minha mulher. Se eu quiser fazer sexo com você aqui na cozinha, na frente das crianças, eu faço’. Aquilo me deixou com tanta raiva que eu disse que ele nunca mais ia me tocar”, recorda.

    Ameaçada de morte depois de fazer, propositalmente, uma canjica com muito açúcar depois de uma briga, ela não tinha dinheiro para fugir: “Ele correu atrás de mim com uma faca até que eu entrei na casa de um dos meus irmãos, que era vizinho nosso. Depois de um tempo, um dos meninos encheu, escondido, um saco de café lá na casa do Joaquim, a gente vendeu para comprar passagem e veio para Curitiba”.

    José Carlos, outra vez, ficou com uma das irmãs de Emília que até hoje mora em Jacutinga, Rufina, para terminar o ano escolar.

    Noção de família como patrimônio

    Em que pese certo rancor que representou à Emília e aos quatro filhos que carregam seu sobrenome, a forma como Jair construiu a própria biografia é fruto de um contexto. Ele não foi, sobremaneira, uma exceção quando o assunto é abandono por parte da figura paterna. Pelo contrário, a história dos André é um sulco dos arranjos familiares no Brasil. É preciso reconhecer que a noção de família surgiu e se consolidou a partir de uma demarcação entre biologia e cultura. Decorrente do processo de sedentarização e da necessidade do estabelecimento de regras mínimas que garantissem laços dentro de um grupo e na relação com outras comunidades, a construção cultural da família centrou-se na ideia de matrimônio.

    Segundo a tese de Karina de Mendonça Vasconcellos — publicada em 2013 pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações da Universidade de Brasília (UnB) —, a própria etimologia da palavra “família” dá indícios ao conjunto de valores nela implicados. O termo deriva do latim familia, cujo significado remete ao “conjunto de propriedades de alguém. Como familia vem de famulus, que significa escravo doméstico, estas propriedades incluem os escravos e as pessoas ligadas a uma grande personalidade” (p. 31-32).

    Assim, desde sua concepção, o entendimento do termo carrega e aceita a desigualdade de poder entre seus integrantes, com foco na centralidade da figura patriarcal. A leniência de Emília e as exorbitâncias de Jair portam traços dessa perspectiva, entendida como normal no período. No papel virtual de patriarca, visitou Curitiba em meados dos anos 1980 com o intuito de levar novamente a ex-esposa para Mato Grosso do Sul. “Ele ficou sabendo que eu tinha conseguido comprar uma casa em Curitiba e veio aqui achando que ia negociar a casa para ter uma parte. Por isso queria voltar comigo”, aposta a ex-esposa ao mesmo tempo em que exemplifica como a noção de posse por parte da figura masculina é vista como natural, intepretação que acompanhou Jair até seus últimos dias.

    Por coincidência do destino, os dois conversaram por videochamada cerca de um mês antes do falecimento: “Ele disse que estava sendo maltratado pelas mulheres lá em Campo Grande e perguntou se eu ainda queria voltar com ele. Aí ainda ficou bravo com a resposta”.

    No papel, família André; na vida real, família Balduíno

    No Brasil, em particular, de acordo com Eni de Mesquita Samara, no artigo O que mudou na família brasileira?: da colônia à atualidade, publicado em 2002 pela revista Psicologia USP, há uma ideia deturpada da composição familiar hegemônica no país desde o período colonial, quando as famílias mais comuns não eram as patriarcais, e sim “aquelas com estruturas mais simples e menor número de integrantes” (p. 28).

    Emília, por volta de 2010, na última vez que Jair veio a Curitiba. (Foto: Arquivo pessoal)

    O estudo, que avalia os censos populacionais brasileiros ao longo de um século e meio, indica uma representativa existência de famílias chefiadas por mulheres ainda no século XIX. Em complemento, a pesquisa de Karina de Mendonça Vasconcellos, desenvolvida a partir de números extraídos de levantamentos do IBGE realizados entre 1992 e 2009, demonstra outras transformações nos padrões familiares, com a redução das formas tradicionais e o consequente aumento de famílias unipessoais, “assim como o número de casais sem filhos, de famílias monoparentais femininas e de famílias chefiadas por mulheres” (p. 18).

    Conforme o boletim As dificuldades das mulheres chefes de família no mercado de trabalho, publicado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), a maioria dos domicílios no Brasil é chefiada por mulheres, especialmente as negras. Os dados revelam que dos 75 milhões de lares do país, elas lideram 38,1 milhões de famílias (50,8%).

    Vive-se luto quando houve rompimento há muito tempo?

    A pessoa que teimou em ler até aqui e continua atenta vai perceber que pouco se fez questão de saber da vida de Jair desde o início da década de 1980. Simbolicamente, ele esteve morto durante todos estes anos. Foi visto em apenas três ocasiões: nas duas vezes em que esteve em Curitiba, respectivamente, em meados dos anos 1980 e, talvez, por volta de 2010, intercalada por uma visita a Campo Grande, em 2001 (algumas imagens do acervo pessoal da família abaixo). Na última vez que esteve em Curitiba, veio apenas porque precisava convencer a ex-esposa a autorizar a venda de uma casa em Campo Grande, algo que ela fez sem receber qualquer compensação financeira por um bem que ela teria direito — foi apenas a terceira vez que Emília fez mal negócio envolvendo imóvel.

    Segundo a psicóloga Rosevani Chiapetti, que atua na Fundação Estatal de Atenção à Saúde (Feas) com pessoas em situação de luto, distância e tempo não são fatores determinantes para que uma pessoa deixe de viver o processo. “Como agora a perda é real”, explica ela, a família “vai ter que repassar sentimentos que talvez estivessem esquecidos, adormecidos”. A profissional argumenta que em relações mais convencionais, nas quais há compartilhamento de afetividade, a falta da pessoa se transforma em saudade, porque o espaço de ausência é substituído progressivamente pela presença de memórias: “Em casos nos quais não há muita experiência compartilhada, talvez seja necessário repassar as partes negativas mesmo. Reviver esse vínculo, por mais negativo que seja, vai assentando a ideia de que a pessoa falecida não está mais aqui”.

    Jair deixa — se é que já não havia deixado — algumas ex-esposas, 13 filhos e, 26 netos. Entre eles, o Marquinhos, de 35 anos, filho de Maurício, que, sem lembrar o nome do avô biológico paterno, questionou quando soube da notícia: “Que Jair que morreu? O Bolsonaro?”. A negativa veio acompanhada de uma conclusão rasa e em tom jocoso deste autor: “Talvez a explicação de tantos erros seja mesmo o nome”.

    Hendryo André é jornalista, professor universitário e primeiro neto de Emília e Jair.

  • “A escola está ruim para todo mundo, mas só pedem aos estudantes com deficiência que se retirem”

    “A escola está ruim para todo mundo, mas só pedem aos estudantes com deficiência que se retirem”

    A educação especial direcionada a estudantes com deficiência voltou a ser debatida no Senado Federal. O assunto, que foi rechaçado em dezembro de 2020 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), é tema de um ciclo de três audiências públicas conjuntas realizadas este mês pela Comissão de Educação, Cultura e Esporte e a Comissão de Assuntos Sociais da Casa Legislativa.

    Um dos principais argumentos de quem defende a implementação desse tipo de educação é o direito de escolha dos responsáveis, que poderiam decidir matricular filhos e filhas com deficiência em uma escola regular ou em uma escola especial, voltada apenas a estudantes com deficiência. Também alegam que a educação inclusiva, prevista da Constituição Federal de 1988, não foi consolidada em muitas escolas regulares e, por isso, alunos e alunas com deficiência acabam não tendo nesses espaços atendimento que contemple a diversidade de suas características.

    Se a inclusão prevista na legislação brasileira e em acordos internacionais não saiu plenamente do papel, desistir dela é abrir caminho para que crianças e jovens com deficiência sejam segregados na vida escolar, ferindo o direito deles e também o direito de estudantes sem deficiência à convivência, à diversidade.

    Significa privar tanto alunos e alunas com deficiência quanto aqueles sem deficiência de conhecer e compartilhar a humanidade real, com suas múltiplas formas — legítimas — de existência.

    Durante uma das audiências no Senado, a jornalista Mariana Rosa, que também é mestranda em Educação e mãe de Alice, uma menina com deficiência, ressaltou que se o Estado não tem garantido acesso à escola, à saúde e à assistência social como deveria as razões não têm a ver com os corpos com deficiência. Estão relacionadas a “um projeto de exclusão e segregação que não tem deixado que o dinheiro do Fundeb [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação] chegue à escola; não permite que os investimentos na sala de recursos multifuncionais e a implementação do serviço de atendimento educacional especializado aconteçam”.

    Ainda segundo ela, que também é fundadora do Instituto Caue, comprometido com o anticapacitismo e a justiça social, é esse mesmo projeto de exclusão e segregação que está lotando as salas de aula; que não paga salários decentes aos professores e não investe na formação dos profissionais. “A escola está ruim para todo mundo, mas só pedem aos estudantes com deficiência que se retirem de lá”.

    Ainda durante a audiência, Mariana questionou os interesses que sustentam a segregação e fazem com que as pessoas com deficiência e suas famílias, “em vez de terem garantidos seus direitos à vida digna, dependam de favor de instituições filantrópicas, cujos serviços são estimados por muita gente, mas isso não é escolarização”. Ela ainda finalizou sua fala com um apelo aos parlamentares:

    “A segregação não é mais uma alternativa, é uma ilegalidade, um crime. Para que essa página seja definitivamente deixada para trás, a gente precisa que os senhores parlamentares protejam as crianças e cuidem das escolas, provendo projetos de lei que fortaleçam a escola pública e não retirem recursos dessas escolas”.

    Mariana Rosa, jornalista e mãe da Alice

    A educação inclusiva já vinha sendo atacada durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que tentou implementar a Política Nacional de Educação Especial, por meio do Decreto 10.502/20. O texto previa a matrícula de crianças e adolescentes com deficiência em classes e instituições separadas dos demais estudantes. O decreto foi suspenso pelo plenário do STF. Após uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, o Supremo considerou que ele fragilizaria o imperativo constitucional da inclusão de alunos com deficiência na rede regular de ensino.

    No julgamento, o relator, ministro Dias Toffoli afirmou que “o paradigma da educação inclusiva é o resultado de um processo de conquistas sociais que afastaram a ideia de vivência segregada das pessoas com deficiência ou necessidades especiais para inseri-las no contexto da comunidade”. E acrescentou que transformar a exceção — educação em escolas e classes especializadas — em regra representaria “além de grave ofensa à Constituição de 1988, um retrocesso na proteção de direitos desses indivíduos.”
    O tema também mereceu especial atenção do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que revogou o decreto assinado por Bolsonaro em 2020 em uma das suas primeiras decisões depois da posse (Decreto 11.370/23).

    Se, como afirmou o pesquisador Romeu Kazumi Sassaki no livro Inclusão: construindo uma sociedade para todos (Editora WVA, 1999) — uma das principais referências sobre inclusão de pessoas com deficiência e acessibilidade no Brasil —, a sociedade inclusiva “se pauta nos seguintes princípios: celebração das diferenças, direito de pertencer, valorização da diversidade humana e solidariedade humanitária”, é preciso garantir o acesso e a permanência digna de estudantes com deficiência na escola regular; jamais deixá-los fora, apartados, segregados de onde está a geração à qual pertencem e com a qual devem ter assegurado o direito de conviver.

    Com informações da Agência Senado e da Agência Brasil.

  • Comunidades quilombolas de Alcântara e a negação do direito à comunicação

    Comunidades quilombolas de Alcântara e a negação do direito à comunicação

    Marisvaldo Silva Lima, Pesquisador do PGGJor/UFSC e integrante do DHJor, publicou nesta semana o artigo “O Estado Brasileiro, as comunidades quilombolas de Alcântara e a negação do direito à comunicação” no Observatório da Comunicação Pública (OBCOMP) da UFRGS. Lima trata da negação do direito à comunicação como uma estratégia de Estado de desumanização e de desmobilização comunitária no caso das comunidades quilombolas de Alcântara.

    O artigo publicado no OBCOMP reflete a partir do julgamento do Estado Brasileiro, que ocorreu nos dias 26 e 27 de abril, na Corte Interamericana de Direitos Humanos, devido às violações contra as comunidades quilombolas de Alcântara na década de 1980 para a implantação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA). O texto se propõe a pensar como a violação do pleno direito à comunicação propicia outras violências nesse processo que dura mais de 40 anos.

    As comunidades denunciantes alegam que tiveram seus direitos territoriais, sociais e econômicos violados. Porém, considera-se que, juntamente com esses, o direito à comunicação também foi negado às comunidades. Outro aspecto levantado é o uso sistemático da comunicação governamental como ferramenta de violação dos direitos humanos e da cidadania dos moradores, com uso de estratégias de persuasão e manipulação.

    Marisvaldo Silva Lima

    Lima destaca que as decisões relacionadas ao projeto da base de lançamento foram historicamente tomadas sem a participação das comunidades. “A falta de comunicação efetiva entre o Estado, o CLA e as comunidades não só tem dificultado o acesso à informação precisa, mas também tem tentado desarticular a sua capacidade de organização em defesa dos diversos direitos. No caso de Alcântara, a negação do direito à comunicação e o uso da comunicação governamental como forma de manipulação contribuem para a vulnerabilidade e marginalização das comunidades quilombolas, perpetuando sua desumanização”, enfatiza.

    O pesquisador salienta que, embora o Estado Brasileiro tenha se desculpado formalmente e se comprometido a cumprir a sentença da Corte Internacional – que ainda não foi decretada -, uma verdadeira mudança de paradigma só será possível se uma comunicação mais horizontal for estabelecida, levando em consideração as peculiaridades étnicas, os direitos humanos e os interesses das comunidades quilombolas.

    Acesse o texto completo.

  • 18 de maio – Data para lembrar de proteger a infância e enfrentar a brutalidade

    18 de maio – Data para lembrar de proteger a infância e enfrentar a brutalidade

    O Brasil ocupa atualmente a 5ª posição, dentre os países latino-americanos, na lista das nações que possuem ações mais combativas nos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes. O dado foi divulgado pela organização Childhood Brasil na última quarta-feira (17) como parte do Índice Fora das Sombras, documento que compara as ações de 60 países no enfrentamento da violação dos direitos sexuais infanto-juvenis. 

    O índice é subdividido em duas categorias: resposta, que inclui serviços de apoio às vítimas e processos judiciais, e prevenção, que considera, por exemplo, leis de proteção e políticas que tentam evitar que a violência aconteça.

    Tal desempenho do país está relacionado ao longo processo de mobilização e sensibilização do Estado e da população acerca da necessidade de proteger os direitos humanos de crianças e adolescentes.

    Entre essas iniciativas está o 18 de maio – Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. A data foi instituída pela Lei Federal 9.970/00 em memória da menina capixaba Araceli Crespo, que foi estuprada e morta em 1973, aos oito anos de idade.

    O caso Araceli chocou o país pela brutalidade e pela impunidade dos suspeitos, jovens que pertenciam a famílias influentes do Espírito Santo. Eles foram acusados de sequestrar, drogar, estuprar e matar Araceli em uma festa regada a drogas e sexo na casa de um deles. Os agressores também foram acusados de desfigurar o corpo da menina com ácido e jogá-lo em um matagal. No entanto, nunca foram condenados pelo crime, pois foram absolvidos em dois julgamentos controversos, em 1980 e 1991. Eles alegaram inocência e contaram com a ajuda de advogados considerados renomados, testemunhas subornadas e autoridades corruptas. O caso foi arquivado pela Justiça e até hoje ninguém foi responsabilizado pela morte da criança.

    Em 2000, o Congresso Nacional instituiu o Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes na data da morte de Araceli, 18 de maio, com o objetivo de mobilizar a sociedade para o engajamento na conquista dos direitos de meninas e meninos do país e na luta pelo fim da violência sexual. 

    De que cenário estamos falando?

    Embora o Brasil ocupe a melhor posição no ranking de países da América Latina que desenvolvem ações de combate à violência sexual, o desafio está longe de acabar. De acordo com estatísticas do Disque 100, somente no primeiro semestre de 2022, foram contabilizados 53,8 mil registros de denúncias de violência contra crianças e adolescentes. Destas, 7,1 mil são de violência sexual. Foram mapeados, ainda, 3.651 pontos de exploração sexual infantil no Brasil em 2020.

    Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 61,3% dos estupros registrados no Brasil são contra menores de 13 anos, sendo que quatro meninas de menos de 13 anos são estupradas por hora no país. Outro aspecto relevante que os dados nos informam é de que 82% dos abusadores são conhecidos da vítima e 76,5% dos casos acontecem dentro de casa; 1%, na escola.

    O recorte de gênero também surge nos números coletados, que apontam que  85,5% das vítimas são do sexo feminino sendo que a a faixa etária da maioria das meninas vítimas dessa violência é de 10 a 14 anos. Já os meninos possuem entre quatro e oito anos. 

    Os dados são alarmantes, mas, segundo estimativas, somente 10% dos casos são denunciados. Ou seja, muitas crianças e adolescentes no Brasil sofrem violência em silêncio e é papel de todos protegê-las com prioridade absoluta.

    Como denunciar?

    – O Disque 100, canal de denúncia anônima do governo federal, funciona 24 horas, todos os dias da semana. Basta ligar gratuitamente para o número 100. Também é possível denunciar pelo aplicativo Direitos Humanos Brasil ou pelo número de WhatsApp (61) 99656-5008.

    – A denúncia pode ser feita presencialmente em uma delegacia de polícia, de preferência uma delegacia de proteção à mulher ou de crianças e adolescentes, se houver na sua cidade.

    – Os Conselhos Tutelares podem ser procurados para ajudar a tirar uma criança de uma situação de violência, ainda que seja uma suspeita.

  • Me explica, porque eu não entendo

    Me explica, porque eu não entendo

    Conheci Laura* no meu primeiro dia na paróquia. Estava linda. Toda arrumada, cheirosa e animada porque tinha conseguido um emprego. Muito extrovertida, ficaria na porta de uma loja de roupas convidando os clientes a entrar. Estava esperando o padre porque queria um pacote de macarrão e uma massa de tomate. Ofereci-me para ir ao mercado com ela e na caminhada me contou um pouco da sua história. Disse que teve gêmeos, mas a menina morreu logo depois de nascer. “Eu não aguentei, você entende? Era dor demais. Deixei o menino com a minha mãe e fui para a rua, foi como comecei no crack. O padre comprou o caixãozinho da minha filha”.  

    No mercado, disse que ela poderia escolher o que quisesse. “Não, de jeito nenhum, você já está me ajudando, não quero abusar”. Pegou um pacote de macarrão, uma massa de tomate e me pediu autorização para levar uma lata de milho. Tudo ela escolheu do mais barato. Nos despedimos. Naquele dia fiquei pensando na desigualdade.

    Se Laura não fosse pobre, após o trauma teria acesso a atendimento psicológico, a uma rede de apoio, com certeza não iria parar na rua. Poderia até se envolver com drogas diante da dor da perda da filha, mas a história seria outra. Rico viciado vai para a clínica. Pobre viciado vai para a calçada. Rico viciado é chamado de doente. Pobre viciado é chamado de vagabundo, lixo, fraco. A gente repete que população de rua é caso de saúde pública, mas a verdade é que antes de tudo é caso de desigualdade social.

    No dia seguinte, encontrei Laura quando ajudava a distribuir o café da manhã no Núcleo de Convivência São Martinho de Lima, no bairro da Mooca, zona leste de São Paulo. De segunda a sexta-feira, após rezar a missa, o padre Júlio Lancellotti empurra um carrinho de mercado pela rua, por cerca de cento e cinquenta metros, levando pão para quem não tem teto.

    A ajuda vem de voluntários, mas, principalmente, de André e Gabriel, que já viveram nas ruas e hoje chamam o padre de pai. O pão macio e fresquinho que o padre Júlio distribui – acompanhado de achocolatado – é produzido por pessoas que já tiveram em situação de rua em uma padaria solidária. Em alguns dias, o cardápio é ampliado. Banana, maçã, pera. Depende do que chegar de doação. O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra) é um grande parceiro.

    Naquele dia minha função era entregar os pedaços de panetone cortados pelo padre. O atendimento diário no local, uma espécie de galpão onde as pessoas também têm acesso a banho e almoço (distribuído pela prefeitura), vai de 500 a 800. Muitos olhares passam envergonhados. A maioria ali é de homens, negros.

    “Padre, hoje Laura está diferente”, eu disse. Ele me olhou como quem diz “é assim mesmo”.

    Mas, entenda, não é um olhar de decepção. Sem romantismo, é um olhar de quem entende a realidade. Laura estava suja e com o comportamento alterado, mas fazia um esforço para parecer bem e estava visivelmente envergonhada. Falou alguma coisa, pegou o pão e saiu.


    No dia seguinte, não vi Laura. Enquanto estava na pequena paróquia, que tem como forte referência a irmã Dulce – em cartazes e até em uma estátua de bronze– chegaram Wilian e Welington. Aos 21 anos, os irmãos, gêmeos idênticos, passaram por diversas fazendas trabalhando em lavouras até chegar na capital. Em um dos locais, colhiam tomates e ganhavam R$ 1,50 por caixa que, segundo eles, comportava cada uma cerca de 40 quilos. UM REAL E CINQUENTA CENTAVOS POR CAIXA. Trabalhando o dia todo debaixo do sol, carregando as caixas até os caminhões, em regime análogo à escravidão.

    Patrícia ao lado do padre Julio Lancelloti (Arquivo pessoal)

    No dia seguinte, não vi Laura. Enquanto estava na pequena paróquia, que tem como forte referência a irmã Dulce – em cartazes e até em uma estátua de bronze– chegaram Wilian e Welington. Aos 21 anos, os irmãos, gêmeos idênticos, passaram por diversas fazendas trabalhando em lavouras até chegar na capital. Em um dos locais, colhiam tomates e ganhavam R$ 1,50 por caixa que, segundo eles, comportava cada uma cerca de 40 quilos. UM REAL E CINQUENTA CENTAVOS POR CAIXA. Trabalhando o dia todo debaixo do sol, carregando as caixas até os caminhões, em regime análogo à escravidão.

    Wilian e Welington tinham a pele bem castigada e ferimentos nas pernas. Nunca tinham ouvido falar em Bolsa Família nem SUS. Perguntei sobre família.

    “A gente costuma dizer que não tem família porque não conhecemos nosso pai e nossa mãe não quis a gente”.

    Não estiquei o assunto. Aprendi que é cruel fazer as pessoas reviverem suas dores. Fiquei pensando no quanto tive essa atitude egoísta nos vinte anos que trabalhei na reportagem. Mexer em feridas só porque a gente tem que fechar uma matéria.

    “Você almoça conosco?”, convidou o padre. Fomos eu, ele, André, Gabriel, Wilian, Welington, Paulo (sociólogo que há mais de uma década acompanha o padre e comanda o projeto Caminhos da Rua), Humberto (estudante de doutorado que, assim como eu, tinha interesse acadêmico na visita) e mais algumas pessoas até um pequeno restaurante em frente à paróquia. Ali pude conversar um pouco mais com padre Júlio sobre como ele avalia a postura da imprensa diante da população de rua.

    “Existe jornalista especializado para tudo, política, economia, cultura. Mas não existe jornalista social, nem especializado em pessoas em situação de rua, que é uma realidade complexa. Os repórteres chegam aqui e preciso explicar o básico”, disse. Concordamos que o jornalismo atua primordialmente nas consequências e não nas causas que levam as pessoas à rua. Que o Estado é pouco cobrado em relação a políticas sociais de moradia e emprego e ações que desburocratizem o sistema (por exemplo, o Poder Público leva meses, no plural, para comprar uma passagem para uma pessoa que está na rua e apenas quer voltar para o estado de origem).

    Enquanto conversávamos, reparei no que Wilian dizia ao irmão. “A gente nunca foi tratado assim”. E achou melhor alertar o padre. “Padre, eu não sei usar garfo”. A resposta veio com naturalidade. “Usa colher, ué”. Assim, entre sorrisos e conversas, padre Júlio respira e se dirige a mim com o rosto vermelho e os olhos cheios de lágrimas.

    “Me explica como uma pessoa é capaz de olhar nos olhos da outra e fazer dela um escravo. Porque eu não entendo”. Só consegui responder “eu também não, padre… eu também não”.

    Após o almoço, o padre saiu para um compromisso e me ofereci para ajudar na instalação dos meninos, custeada pelo Caminhos da Rua. André e Gabriel foram em busca de um teto seguro para alugar. Fiquei encarregada de levar os gêmeos até a unidade de saúde para tratar os ferimentos e fazer a carteirinha do SUS. Depois, deixamos Wilian e Welington na quitinete alugada e enquanto eles limpavam o local, fomos em busca da mobília. Acompanhei André e Gabriel na compra de fogão, geladeira, bicama e televisão, tudo transportado na Kombi de Renato.

    Ele recebeu pelo frete, mas fez muito mais. Ajudou a carregar tudo, transportar, montar e comprou água quando todo mundo estava com sede. Descobri que a senhora que estava na quitinete ao lado não tinha geladeira. Wilian na mesma hora voltou-se ao irmão. “A gente pode deixar ela guardar as coisas na nossa”. Naquele dia, pensei em como a solidariedade domina aquele pedacinho da gigante São Paulo.

    O dia seguinte começou igual: missa (em que o padre Júlio falou de amor ao próximo, vacinação contra covid e a lei que passou a valer liberando as mulheres da autorização do marido para a cirurgia de laqueadura), carrinho de mercado, caminhada, distribuição, Laura (ainda suja e envergonhada). Foi enquanto ajudava a recolher o lixo que Raimundo entrou na minha vida.

    Raimundo, de uns 50 anos, desmaiou antes do primeiro gole de café. Corri para pegar uma cadeira enquanto dois voluntários o seguravam. Sentado, começou a vomitar no salão. Segurei a testa dele (como faço com os meus filhos) e disse “pode vomitar, você vai ficar bem”. O olho dele girava. Segurei a cabeça dele na direção da minha, olho no olho. “Olha pra mim! Meu nome é Patrícia e vou ficar com você, tá me ouvindo?”. Balançou a cabeça positivamente. “Como é o seu nome?”. “Raimundo”.

    Raimundo suava frio, vomitava e tinha dificuldades para respirar. Os voluntários ligaram várias vezes para a ambulância, que não apareceu. Alguém veio com a solução. “Vamos conseguir uma cadeira de rodas e empurrar ele até a UPA”. Veio a cadeira e lá fomos nós, eu, Téo (também em situação de rua) e outra voluntária empurrando pelo asfalto a cadeira que tinha a roda quebrada e era preciso girar com força cada vez que ela emperrava. E ela emperrava de dois em dois minutos. Raimundo chorava. “Eu não quero morrer”.

    “Olha pra mim, Raimundo! Você não morre hoje”.

    A UPA não era longe. Raimundo, diabético e hipertenso, chegou com uma dor muito forte no peito e foi direto para a sala do eletrocardiograma. A médica suspeitava de infarto. As horas passaram entre vômitos, medicação, troponina, raio-x, mais vômito, mais medicação, mais exames. Téo precisou ir. Éramos eu e Raimundo agora. A médica dizia “você já fez a sua parte, não precisa ficar aqui com ele, avisa a assistência social da UPA e pode ir”.

    Não, eu não ia embora. Prometi a Raimundo que ele não estava sozinho. Pelo menos não naquele dia. Coloquei uma pulseira minha no braço dele. “Tá vendo essa pulseira, seu Raimundo? É para o senhor não esquecer que eu estou aqui com o senhor”. Não, doutora, eu não vou embora.

    Enquanto ele era medicado, fiquei observando a movimentação na UPA. Laura apareceu. “Laura, o que você está fazendo aqui? Está se sentindo mal?”, perguntei. “Não, eu venho aqui beber água”. Para quem não tem casa, a UPA supre necessidades básicas como água e banheiro. Vi uma senhora que recebeu alta, mas não tinha para onde ir. Ficou lá durante horas.

    “Com certeza ela vai passar a noite aqui. Muita gente faz isso. É mais seguro do que estar na rua”, disse o enfermeiro.

    Existem abrigos na região, mas nem sempre há vagas. Além disso, quem perde o horário da entrada só tem a calçada como opção.

    Esperando Raimundo pude conversar um pouco mais com Renato. Vi o padre Júlio acordá-lo na calçada duas manhãs seguidas para que não perdesse o café da manhã. Renato tem 36 anos e uma filha de 12. Tinha casa, família, passou por vários empregos de carteira assinada, mas agora dorme na rua. “O crack levou tudo o que eu tinha”. Calmo, gentil, um pouco tímido, foi companhia agradável naquele dia turbulento. Laura fez outra aparição e sumiu de novo.

    Já era noite quando o grito de raiva da técnica de enfermagem ecoou na unidade lotada. “Quem é acompanhante de Raimundo?”. Apresentei-me e ela esbravejou ganhando a atenção da plateia de pacientes. “Ele se urinou todo, molhou todo o chão!!”. Raimundo, apesar da fralda, estava na cadeira de rodas envolto em duas poças de urina, uma na cadeira e outra no chão, que alguns funcionários se apressaram em jogar papel, de forma nada discreta, com movimentos grandes, teatrais.

    “Você vai ajudar a lavar ele!!!”, ela gritava para a audiência enquanto Raimundo chorava de vergonha na cadeira.

    Chamei a moça em um canto e perguntei o porquê de estar gritando. “Você vai ajudar a limpar ele!!”, ela repetia. “Isso eu já entendi, eu não entendi porque você está gritando”. A resposta veio louca, em um tom abaixo do primeiro escândalo. “A senhora me entendeu mal, eu não fui grossa com você”. Em nenhum momento eu havia dito isso. Até porque a pessoa que mais sofreu com essa exposição não fui eu, mas estava bem ali, vulnerável, invisível. Demos banho em Raimundo. Eu tinha que fechar constantemente a porta que ela e outra técnica insistiam em deixar aberta, apesar do paciente estar nu, completamente exposto. Pensei se rico passava por isso.

    “Que humilhação”, Raimundo chorava. “Não tem nada de humilhação, Raimundo. Olha pra mim. É assim mesmo, todo mundo passa por isso”, menti, tentando ser acolhedora. Como a bermuda dele foi cortada, não havia o que vestir. “Ele vai ficar só de fralda”, esbravejou a outra técnica. “Fique tranquilo, o senhor não vai ficar só de fralda, eu consigo uma bermuda”, tranquilizei. Enquanto a gente puxava a cadeira de rodas para fora do banheiro, ele pediu nervoso. “Patrícia, a minha pulseira! Elas tiraram para o banho, pega pra mim na pia”. Era a pulseira que eu tinha dado.

    Raimundo foi colocado no corredor da UPA de camiseta, fralda e com um lençol por cima das pernas. “Já volto com uma bermuda para o senhor”, eu disse. Eram oito horas da noite, estávamos há quase doze horas ali, ele já se sentindo bem melhor, agora só aguardando o médico dizer se precisaria de internação. Atravessei o portão da UPA, chovia forte, e ali chorei um tanto. Chorei de cansaço, de impotência, do fato de que dali eu iria para um quarto de hotel e Raimundo para o abrigo (a essa altura eu já tinha descoberto o telefone da assistente social do abrigo e conseguido autorização para que ele entrasse caso recebesse alta).

    Não deu tempo de lamentar muito. Raimundo precisava de uma bermuda. Tentei sem sucesso na assistência social da UPA. Até que vi Laura. Ela estava muito agitada. “Laura, me ajuda. Preciso de uma bermuda para o Raimundo, ele está só de fraldas no corredor do hospital”. A resposta veio prática. “Qual tamanho? Quer uma camisa também? É bom que faz conjunto. Vou conseguir pra você”. E saiu. Olhei com descrédito. A intenção era boa, mas se no caminho ela usasse alguma coisa, já era a bermuda de Raimundo. Peguei um uber e achei uma loja aberta na Mooca. Comprei duas bermudas e voltei. Raimundo estava na mesma posição. No colo, uma sacola com a bermuda e a camisa que Laura levou. Segurei o choro.

    No final das contas, o infarto não se confirmou. O médico da noite disse que os exames estavam normais. Ali, naquele momento, já bom das dores e respirando bem, vendo a alta se aproximar, Raimundo disse que parte do corpo estava paralisada. O exame clínico mostrou que não. Naquela altura do campeonato, quase dez da noite, Raimundo não me falou, mas percebi que queria dormir ali, afinal era um teto seguro com garantia de comida. Fomos de uber até o abrigo onde ele dorme há um ano e meio e sonha em juntar dinheiro. Não quer voltar assim, sem nada, para a Paraíba, onde estão a mãe e a irmã. Aquela noite não consegui dormir. O motorista do uber, que nunca tinha visto de tão perto aquela realidade, fez questão de não cobrar a corrida.

    Não vi mais Laura. Não pude lhe agradecer pela bermuda

    No dia seguinte fui até o viaduto onde há dois anos dezesseis famílias improvisaram um local para dormir. Era minha segunda visita. Tapumes foram usados para separar um pedacinho para cada grupo familiar. A convivência tinha regras definidas. Ali, onde viviam muitas crianças (todas matriculadas na escola) era proibido usar drogas e bater em mulher.

    Padre Júlio acompanhava o grupo há bastante tempo. Uniu o Caminhos da Rua e o projeto habitacional Fica para tirar as famílias do viaduto. Elas foram recolocadas em apartamentos próximos dali, onde teriam seis meses para começar a pagar aluguel (150 reais por mês) e um ano para o condomínio (mais 150 reais). Naquele dia de despedida do viaduto, Darlene, mãe de dois filhos, e Márcia, de oito, estavam radiantes de alegria.

    Preciso falar sobre Márcia

    Quando criança acompanhou o sofrimento da irmã, a violência e os abusos do padrasto e a incapacidade de reação da mãe. No início da adolescência, quando percebeu que seria a próxima a ser molestada naquele ambiente que não reconhecia como lar, Márcia fugiu. Passou a dormir nas calçadas e a pedir dinheiro. Não conversava com as outras pessoas em situação de rua, tinha medo. Uma noite, enquanto dormia, um homem se deitou junto dela. Ela acordou com os gritos dos outros homens que já a tinham visto por lá e naquele momento colocavam o potencial agressor para correr.

    “Percebi que eles me protegiam sem eu saber. Tem muito disso na rua”. Aos 16 anos, Márcia conheceu Judson. Estão juntos há vinte anos, com oito filhos. As crianças são apaixonadas pela mãe. Estão sempre agarradas às pernas de Márcia, mulher de voz alta, fala grossa e que sonha em ter uma casa e finalmente se casar com Judson. “Padre Júlio não sabe, mas é ele quem vai celebrar meu casamento”.

    O casal aparentava parceria e amizade de quem passou junto pelo fundo do poço. Há alguns anos, o vício em crack quase acabou com tudo. “Eu usava pra ficar fazendo faxina, você acredita? Pra esquecer um pouco que a gente tava na rua e todo dia lutava só pra ter o que comer. Judson usava mais do que eu e ficava agressivo”. Márcia dizia o tempo todo que apesar do vício nunca deixou de cuidar dos filhos. Repetia tanto isso que me fez pensar se dizia para mim ou para ela mesma.

    A resposta veio durante o caminho que percorri com Judson por duas farmácias em busca de remédios para a mãe dele recém-operada. Ele me contou que perderam a guarda de um dos filhos. Para aquela mãe, amorosa no seu jeito bruto, foi o fim. Ela parou de usar crack e obrigou Judson a parar também. Fizeram tudo o que o juiz mandou e recuperaram a guarda do filho. Imaginei a dor e a culpa que Márcia sentiu. A dor pelo afastamento do filho pequeno, por um juiz – que nunca viveu o que ela viveu – sentenciar que naquele momento ela não tinha condições de cuidar da criança. A culpa por saber que o juiz estava certo. Entendi o porquê de não ter me contado.

    Sentada no meio-fio do viaduto acompanhando as famílias guardarem em caixas os pertences que levariam para os apartamentos, pensei naquela oportunidade. Já tinha entrevistado várias vezes pessoas em situação de rua, mas nunca criei um vínculo real. Era preciso conviver com elas. Era preciso estar ali sem precisar tirar nada (nenhuma entrevista, nenhum choro emocionado). Só estar. Ouvir e observar. Sem julgar, sem oferecer solução, mexer em feridas ou dar lição de moral a partir de um lugar de conforto.

    É o que padre Júlio faz há trinta anos. Olha a sociedade a partir da ótica do mais vulnerável. Oferece pão, água, cobertor, banheiro, acolhimento. Dá bronca também. Em quem tenta passar duas vezes na fila do café da manhã ou pega cesta básica para vender no sinal. Júlio Renato também luta. Ativista, participa de entrevistas e denuncia as alucinações do prefeito de São Paulo. O padre não deixa a população de rua ser esquecida. E transforma pão e palavra em mudança social. Há dois meses foi promulgada a lei que leva seu nome e proíbe a arquitetura hostil em todo o País. Agora, batalha para criminalizar a aporofobia, o ódio aos pobres.

    *Os nomes verdadeiros das pessoas em situação de rua foram preservados.

    Publicado originalmente em Primeira Página, em 09/04/2023.

  • Boaventura de Sousa Santos em retrato preto e branco

    Boaventura de Sousa Santos em retrato preto e branco

    Conheci Boaventura de Sousa Santos pessoalmente em dezembro de 2012. Fui apresentado a seus escritos mais de dez anos antes, durante o doutorado na Escola de Comunicações e Artes da USP. Com a oportunidade de cumprir estágio pós-doutoral em Coimbra, decidi examinar sua obra para verificar como suas ideias poderiam me ajudar a compreender o Jornalismo. Mais que isso, queria observar suas falas, seus olhares, seus gestos, sentir um pouco mais seu mod’ser. Aquele ano letivo europeu (2012-2013) foi fascinante, não só no aprendizado acadêmico, mas também para entender o que é ser brasileiro (embora em Portugal me confundiam com chino).

    Já nos congressos que participei em Portugal e Espanha, as contribuições do autor começaram a emergir, a colaborar para a elaboração de minhas argumentações na crítica aos modelos jornalísticos que me dispus a construir. No retorno ao Brasil, seus livros passaram a ocupar lugar de destaque em minha biblioteca e referência relevante em trabalhos para congressos e artigos de revistas científicas. Passei a ofertar disciplinas na pós-graduação que propunham refletir sobre seu pensamento para a compreensão do Jornalismo. Publicamos uma coletânea de ensaios com base em suas ideias. Tais reflexões propiciaram a criação do Grupo de Estudos Jornalismo e Direitos Humanos (DHJor).

    Soco no estômago – Primeiro o UOL, depois outros órgãos de imprensa. A notícia sobre o escândalo em Coimbra trouxe choque, indignação, frustração. O artigo que deu origem às denúncias de assédio sexual e extrativismo intelectual é avassalador, perturbador.

    The walls spoke when no one else would

    Publicado numa revista britânica, a riqueza de detalhes sobre o drama vivido por muitas mulheres – que deveriam ser acolhidas e orientadas para o melhor estudo – fere os olhos e a alma do leitor minimamente sensível. Uma agressão à inteligência de quem optou por estudar seus textos, como foi meu caso. Noites mal dormidas. Um soco no estômago!

    E daí, a casa caiu? Natalia Timerman escreveu um artigo bem interessante para o Universo UOL.

    O que fazer com livros e textos escritos por intelectuais assediadores?

    Do começo ao fim, a colunista faz questionamentos, provoca, incita. Finaliza de maneira genial:

    – Como mudar?

    – A mudança é individual, coletiva ou ambas?

    – O cancelamento favorece a mudança ou opera segundo a mesma lógica do que cancela?

    – Que bom seria ter todas essas respostas.

    Eu também não tenho respostas a todas as questões que me fiz desde aquele fatídico 11 de abril. O que eu sei é que não posso me envergonhar de ter acreditado na hipótese de o pensamento de Boaventura colaborar para a melhor compreensão do Jornalismo. Não posso me envergonhar de ter levado minhas reflexões a artigos, disciplinas que ministrei, livro que publicamos, alunos que orientei. Mas tenho consciência de que não sou seu cúmplice. Seus livros não estão mais no primeiro plano de minha biblioteca. Foram para a quinta estante. Vou recorrer a eles? Ainda não sei se vou e, se sim, como.

    Cancelamento total e imediato? Talvez não! Tento acreditar que as investigações na Universidade de Coimbra aconteçam com apurações sérias e transparentes.

    Fazendo um retrospecto, penso: o que vou fazer da noção de razão indolente? do pensamento abissal? da sociologia das ausências e das emergências? Boaventura me abriu portas, caminhos para conhecer pensadores dos estudos decoloniais, para encontrar Frantz Fanon, Anibal Quijano, Maldonado-Torres. Inspirou meu diálogo com Edward Said, Silvio Almeida, Lélia Gonzalez, Abdias Nascimento.

    Tenho esposa e uma filha de 25 anos. Não admito assédio sexual a elas como não admito a qualquer pessoa. Também considero reprovável qualquer forma de apropriação intelectual – no meu entender uma atitude tão grave quanto o assédio. Eu continuo “do outro lado da linha abissal”.

    O esforço, lá em 2012, para olhar nos olhos de Boaventura não me permitiram imaginar tal situação. O fato é que a sua imagem, antes em quatro cores, agora está esmaecida… e não passa de um retrato em preto e branco – em alto contraste.

    Como gosta de escrever Ricardo Kotscho, vida que segue… com serenidade, senso crítico e vigilância.

    Publicado originalmente no blog Ijuim Shinbum.

  • Subjetividade e direitos humanos: perspectivas para tensionar o jornalismo

    Subjetividade e direitos humanos: perspectivas para tensionar o jornalismo

    A subjetividade é uma categoria chave para pensar o jornalismo. Modos de perceber e sentir a realidade, padrões de comportamento, políticas, ações, posições e corporalidades podem ser entendidas e problematizadas a partir de discursos e narrativas midiáticas que permeiam nosso cotidiano de diversas maneiras. Com esse intuito, o projeto de extensão Jornalismo e Direitos Humanos (DHJor) realiza uma Mesa de Debate Subjetividade e direitos humanos: perspectivas para tensionar o jornalismo no século XXI.

  • Meu encontro com Rubem Alves e a força para “transbordar”

    Meu encontro com Rubem Alves e a força para “transbordar”

    “20 de outubro de 2001, 7h45, Campo Grande, Auditório do Colégio Dom Bosco. Aguardava com grande expectativa a palestra do psicanalista, escritor e educador Rubem Alves. Como faltavam ainda alguns minutos, quis fumar um último cigarrinho antes da palestra; encontrei uma ampla sacada ajardinada, que dava para o pátio do colégio. Saboreando meu vício maldito, ali me ocorreu uma das raras vantagens de ser fumante: olhei para o lado e lá estava o próprio convidado, observando o ambiente, sozinho, com exclusividade para mim”.

    Este relato originalmente compôs o último texto da minha tese de doutorado (1), que defendi em 2002. Retomo aqui com um excerto daquele escrito porque considero um momento oportuno e necessário para revisitar a “força de vida” de Rubem Alves e um de seus grandes inspiradores: Nietzsche.

    “Havia tempo que eu tinha uma grande curiosidade sobre um detalhe em sua obra: a referência intensa e carinhosa a Nietzsche (2). Estava com a questão no bolso do colete para apresentá-la após a palestra, no debate. Mas estávamos ali, lado a lado, e eu não queria perder essa oportunidade singular. Apaguei o cigarro, aproximei-me, cumprimentamo-nos e comecei ‘quebrando o gelo’ com algumas de suas paixões – falamos sobre jardinagem e culinária. No momento oportuno, coloquei a questão.

    Com o entusiasmo e a ênfase que lhe são peculiares, Rubem Alves argumentou que sente em Nietzsche uma força de vida extraordinária. Explicou que, quando Nietzsche descobre sua doença e sente estar caminhando para a morte, esta vontade de viver fica ainda mais evidente em seus escritos. Alertou sobre as traduções em que o Übermensch leva o significado de ‘super-homem’ ou ‘além-do-homem’ quando, segundo o seu entendimento, a tradução mais correta seria ‘homem transbordante’, que age não a partir daquilo que a sociedade cristalizou como moral, mas a partir da sua própria riqueza e exuberância. O ‘homem transbordante’ faz de sua vida uma permanente luta, inconformado, em oposição à moral do escravo e a do rebanho.

    Fascinado com sua argumentação, fui ainda mais eufórico para o auditório, convencido de que, mais uma vez, nessa oportunidade, Rubem Alves não plantou uma semente, mas plantou esperança“.

    É inegável a força de vida inspirada por esses pensadores: Alves e Nietzsche.

    Em 2018, abrimos uma página sombria de nossa história. Decorrência de vários episódios estranhos desde atos de 2013, passando pelos desastres promovidos pela Lava-jato, a criminalização da política e o processo de impeachment de Dilma, a onda de extrema-direita levou ao poder o excrementíssimo presidente atual. A partir de 1º de janeiro de 2019, a vida brasileira tornou-se um pesadelo constante: cortes de recursos em todas as áreas essenciais, falência das políticas públicas em defesa dos segmentos fragilizados, ataques à imprensa e aos jornalistas, agressão às instituições republicanas. Ao acessar o noticiário, a população (aquela que não fica restrita às redes sociais) acostumou-se a termos como fake news, negacionismo científico, revisionismo histórico, atos antidemocráticos, familícia, Micheque, gabinete do ódio, centrão, desmatamento e queimadas ilegais, invasão de mineradores a terras indígenas, offshore, volta da inflação, desvalorização do real…

    Com o anúncio da pandemia do novo corona vírus agravou-se o quadro – que temos pavor de relembrar e repetir aqui. Mas é preciso: movimento antivacinas, antimáscaras, atraso na aquisição de vacinas, mais de 600 mil mortes – centenas de milhares evitáveis. CPI da Covid, que transformou-se em luz de esperanças ao expor mazelas e revelar a latrina de corrupção instalada no Planalto Central. Que Brasil é esse, nos lembra Cazuza.

    Pensadores progressistas e alguns comunicadores de “pés no chão” nos ajudam a compreender este momento obscuro. Como já escreveu Mário Magalhães (3), 2018 está longe de terminar.

    Esta é a luta de nossas vidas. Por isso, renovo minhas esperanças e energias buscando inspiração em Rubem Alves e Nietzsche. Teremos que ser transbordantes, ter a força de vida para virar essa página de nossa história.

    ______________________________

    (1) Tese defendida na Escola de Comunicações e Artes da USP, depois publicada em livro pela Edufms/Edusc (2005) e pela Labcom Livros (2013).

    (2) Friedrich Wilhelm Nietzsche (Röcken, Reino da Prússia, 15/10/1844 – Weimar, Império Alemão, 25/08/1900) foi um filósofo, filólogo, crítico cultural, poeta e compositor. Escreveu vários textos criticando a religião, a moral, a cultura contemporânea, filosofia e ciência, exibindo uma predileção por metáfora, ironia e aforismo.

    (3) MAGALHÃES, Mário. Sobre lutas e lágrimas: uma biografia de 2018. Rio de Janeiro: Record, 2019.

    Publicado originalmente em Ijuim Shinbum, em 27/11/2021

  • O abraço que quase linchou virtualmente Drauzio Varella

    O abraço que quase linchou virtualmente Drauzio Varella

    Desde 1° de março, quando o Fantástico exibiu uma reportagem especial sobre a situação de transgêneros no sistema penitenciário, o médico Drauzio Varella é assunto recorrente nas redes sociais. Primeiro, foi elogiado pelo gesto empático ao abraçar uma transexual presa em 2010 e que não recebia visitas havia oito anos; depois, virou alvo de ataques porque teria omitido o crime que proporcionou a condenação.

    A exibição da reportagem levanta dilemas éticos relevantes quando se pensa no jornalismo que lida com o tema segurança pública: é obrigatório tipificar e detalhar os crimes quando se entrevistam detentos? O que romantiza mais: a não tipificação do crime ou o detalhamento pormenorizado das ações do criminoso? Trata-se de um recorte aceitável ou de uma manipulação? Antes de buscar contribuir para o debate – por uma perspectiva das produções de sentidos do público -, é preciso contextualizar o caso.

    A história de Suzy

    Em um país polarizado, Drauzio Varella – que já havia sido muito elogiado nas redes sociais após participação no programa Roda Viva, em 10 de fevereiro – praticamente virou unanimidade durante a primeira semana de março por ser um exemplo de altruísmo. Isso ocorreu porque o médico se sensibilizou durante a gravação de uma entrevista e abraçou Susy de Oliveira Santos, de 30 anos, condenada em 2010, que cumpre pena na Penitenciária José Parada Neto, em Guarulhos (SP), quando soube que ela não recebia visitas de familiares e amigos havia oito anos. O abandono foi interpretado como uma consequência de Susy ser transgênero, condição de outras 700 pessoas reclusas só no estado de São Paulo, conforme dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos apresentados pela reportagem do Fantástico.

    O gesto solidário do médico de 76 anos, que há trinta trabalha voluntariamente em prisões, chegou a gerar mobilizações que, por mais que possam ser consideradas pontuais, demonstram potencialidades do telejornalismo no que concerne ao poder de estreitar laços sociais. Uma reportagem do portal G1, em 7 de março, destacou que cinco dias após a exibição do material a presidiária já havia recebido 234 cartas, dezesseis livros e duas Bíblias, além de outros presentes. A mobilização, claro, não foi política e está longe de resolver o problema das pessoas transgênero nos presídios brasileiros, mas sensibiliza a sociedade a minimamente refletir sobre o tema. Diagnóstico dos procedimentos institucionais e experiências de encarceramento encomendado pela pasta da polêmica ministra Damares Alves diz que, das 508 unidades prisionais que participaram do estudo, somente 106 têm celas específicas para a população LGBT – e esse tipo de realidade, ainda que tenha sido apresentada parcialmente pela reportagem do Fantástico, já que a falta de celas específicas gera uma série de violações contra essas pessoas, só pode se alterar a partir da sensibilização da sociedade civil.

    Contudo, na tarde do dia seguinte, o caso sofreu uma reviravolta após o site O Antagonista publicar uma matéria que revelou os motivos pelos quais Suzy foi condenada,. A consequência da publicação pôs parcialmente em xeque a “imunidade” de Drauzio na internet, com a hashtag #drauziovarellalixo subindo nos trending topics do microblog Twitter. Segundo O Antagonista, a transexual foi condenada por homicídio qualificado e estupro de vulnerável de um menino de 9 anos. O texto descreve alguns dos detalhes: “Ele deixou o corpo da criança apodrecer em sua sala por 48 horas. O pai foi avisado pelo próprio assassino que o corpo putrefato fora deixado à sua porta”.

    Drauzio e, principalmente, a produção do Fantástico, foram acusados de manipulação e de protagonizarem a vitimização de uma criminosa impiedosa. Na esteira de ataques, o presidente Bolsonaro se manifestou via Twitter na segunda-feira, 9 de março: “Enquanto a Globo tratava um criminoso como vítima, omitia os crimes por ele praticados: estupro e assassinato de uma criança. Graças à internet livre, o povo não é mais refém de manipulações. Infelizmente, a Constituição não permite prisão perpétua para crimes tão cruéis”.

    Na noite anterior à manifestação presidencial, o Fantástico já havia divulgado uma nota na qual destacava que o objetivo da reportagem foi abordar as condições em que vivem transgêneros no sistema penitenciário brasileiro. Os apresentadores também leram uma nota de Drauzio em que ele dizia que sua área é a medicina, e não a judicial: “Por razões éticas, não busco saber o que de errado fizeram. Sigo essa atitude para cumprir o juramento que fiz ao me tornar médico e para não cair na tentação de traí-lo atendendo apenas aqueles que cometeram crimes leves”. Depois, o médico ainda publicou um vídeo em que explicava o recorte da reportagem e pediu desculpas à família do menino por envolvê-la indiretamente na história.

    A obrigatoriedade de tipificação de crimes

    As mudanças de percepções produzidas pela reportagem do Fantástico nessas duas semanas demonstraram de forma sistematizada algo identificado na pesquisa de doutorado deste autor, e que já foi tema de um texto no Observatório da Imprensa (edição 1076). No estudo de recepção com dezoito telespectadores assíduos dos dois principais noticiários criminais exibidos em Curitiba (Tribuna da Massa e Balanço Geral), precedido por um monitoramento de oitenta edições desses programas, observou-se o quanto os telespectadores demonstram maior ou menor empatia a partir do conhecimento da tipificação dos crimes e, principalmente, das descrições das ações cometidas por agressores e vítimas, estratégia narrativa presente nesses telejornais.

    Durante o monitoramento, houve a preocupação de dividir as 950 inserções noticiosas pela natureza e tipificação das transgressões. A representação da violência nesses noticiários é qualificada, essencialmente, em crimes contra a pessoa (39,6%) e contra o patrimônio (34,1%). Distantes, violações relacionadas ao tráfico ilícito de drogas (6,1%) e contra a dignidade sexual (5,2%) ocupam, respectivamente, a terceira e quarta posições nos crimes mais exibidos pelos programas.

    Se a morte é um valor-notícia eminente para os veículos, os crimes de natureza contra a dignidade sexual carregam uma especificidade: as vítimas costumam pertencer a faixas etárias vulneráveis, especialmente infância e adolescência, com idades entre 3 e 13 anos, muitas vezes sofrendo longos períodos de abuso sexual. Esse tipo de crime está, assim como todos os que envolvem pessoas com laços familiares ou afetivos, entre aqueles que mais produzem sentidos nos telespectadores dos noticiários.

    Na etapa de recepção foi identificada a dificuldade que os telespectadores têm de memorizar os fatos objetivos das notícias, ainda que a estratégia narrativa dos programas seja a de descrever os pormenores dos crimes, com ênfase para as ações dos criminosos e as quase sempre inúteis reações das vítimas. Por outro lado, isso não impede que os respondentes produzam sentidos a partir dos crimes midiatizados. Nesse aspecto, vários participantes citaram situações genéricas quando questionados sobre a lembrança de crimes mostrados pelos noticiários. Episódios que envolvam a instituição família (ou suas derivações, como em crimes cujas vítimas são crianças) foram citados diretamente por dois terços dos entrevistados.

    Essas percepções afetam as visões de mundo dos participantes da pesquisa. Um exemplo extraído da pesquisa dentro dos limites deste texto: quais reações tomariam caso se deparassem, em um local público, com uma pessoa apanhando que estivesse sendo acusada de ter furtado ou roubado uma bicicleta. Eles foram questionados se aprovavam ou desaprovavam a ação dos populares e quais atitudes tomariam. Na sequência, a mesma circunstância foi posta, mas dessa vez a pessoa que sofre as agressões foi apontada pelos populares como autora de um estupro de vulnerável.

    A indiferença pelo desfecho do linchamento, desde que não se trate de um membro familiar ou próximo, foi marca encontrada nas respostas para o furto da bicicleta, ainda que vários entrevistados tenham buscado atenuar o hipotético crime. Porém, quando a acusação muda, as noções de civilidade se perdem. Um dos entrevistados, que acionaria a polícia apenas no primeiro cenário, afirmou que não sentiria nenhum tipo de culpa se o referido  espancamento resultasse em morte em nenhuma das duas situações. Outra não aprova a ideia de que alguém seja agredido por roubar uma bicicleta, fato que a faria acionar a polícia, mas uma interferência só ocorreria se a vítima do linchamento fosse alguém próximo. “Se não fosse um parente meu, eu não iria pôr em risco a minha vida se eles estão batendo, estão quase matando.” A opinião muda drasticamente se o suposto crime envolvesse um estupro de vulnerável: “É uma coisa muito forte, estupro, pedofilia… uma pedrinha eu jogaria ali. Só se tivesse certeza [da culpa] eu participaria”, diz uma das entrevistadas.

    Nessa questão, os entrevistados se dividem entre aqueles que não mudariam de atitude independentemente do crime e entre aqueles que teriam as reações pautadas, sobretudo, pela tipificação do ato criminal ou pela certeza de culpa ou inocência da pessoa em linchamento. No primeiro caso, uma das interlocutoras, pensionista cadeirante, afirma que, se pudesse se movimentar sem restrições, ajudaria nas agressões se tivesse provas. “Primeiro tinha que ter provas. Depois das provas, daí você até ajuda a matar […]. Acho que, se atacasse a minha família, né, daí eu mataria. Por causa de uma família minha, eu mataria.” Há, por outro lado, quem discorde de qualquer forma de justiça pelas próprias mãos. Um dos respondentes diz que violência não combate violência, enquanto outro diz que a polícia é a melhor saída, independentemente do ato criminal. “Porque daí você passa de vítima para agressor.”

    Os demais afirmaram que perderiam a civilidade apenas na situação do estupro de vulnerável. Um deles diz afirma ser impossível não mudar de opinião e de atitude de acordo com os crimes, especialmente pelo aspecto familiar. “Você imagina o que faria pela sua família. Agora imagina, às vezes, a família daquela criança não tá ali ou, mesmo que esteja, a dor que está passando, então nessa hora o cara pode perder a paciência.” Outros dois são mais enfáticos: o primeiro, um policial militar aposentado, frisa que “taradão não tem perdão”, enquanto a segunda, desempregada, diz que há muitas mulheres “à toa aí”, algo compartilhado por outra entrevistada, e que sugere que a violência contra as mulheres seja, até certo ponto, aceitável se posta lado a lado a contra uma criança.

    Pensando em como o público negocia, reinterpreta e reelabora sentidos, outro participante, um agente de escolta armada, assevera que seria o primeiro a atacar o suspeito de crime sexual na situação hipotética. Com base em princípios religiosos, outra participante, uma zeladora e comerciante, relaciona o caráter puro das crianças à reação agressiva: “Deus fala que ninguém chega até ele se não tiver um coração de uma criança, um coração ingênuo, um coração puro”. Ela confessa que, se soubesse que a pessoa tinha cometido algo contra uma criança, mataria essa “pessoa de boa”, ainda que tal atitude não garantisse a ela o “coração ingênuo” necessário para se aproximar dos céus. Outro participante deixa implícito que o fato de ser apenas um roubo de uma bicicleta faria com que tivesse menos animosidade com o suspeito. “Não é um caso de vida ou morte. Foi um roubo de uma bicicleta. E a gente não tem certeza se a bicicleta foi mesmo roubada – ou se era dele ou se não era”. Já outra respondente, aposentada, diz não saber avaliar se a violência resolve e relaciona o fato de ser favorável às agressões com o teor de impunidade inerente à Justiça e valorizado pelos telejornais: “Tem que apanhar mesmo. Não sei, né, se apanhar resolve. […] Só que a polícia vai prender o estuprador, no outro dia a Justiça solta”. Como a questão da justiça pelas próprias mãos é vista por alguns deles como uma forma de reação até certo ponto legítima, haja vista que a Justiça é considerada morosa e, conforme os relatos, condescendente com a impunidade, os respondentes foram unânimes em concordar com uma ideia defendida pelos âncoras dos noticiários: a de que os presidiários têm cada vez mais direitos e menos deveres.

    Quando se pensam nos crimes, o Fantástico tomou uma atitude exatamente oposta à presente nos noticiários criminais estudados, que sobrevalorizam os pormenores dos crimes e acabam por romantizar a violência. O programa produziu uma reportagem sobre segurança pública, e não sobre jornalismo criminal. Buscou humanizar, não estigmatizar. A escolha de Suzy como uma das fontes realmente foi uma infelicidade se for levado em consideração o histórico teor ostensivo com que crimes hediondos são julgados pela sociedade brasileira, além da percepção sobre como esse tipo de crime abala a instituição família; o recorte que omitiu os crimes das pessoas entrevistadas (um deles, aliás, foi identificado como roubo, mas sem detalhar a ação), por outro lado, demonstrou, pelo menos por um tempo, potencialidades de um jornalismo que pode promover diálogo. Sob o ponto de vista jornalístico, parece cada vez mais necessário pensar em protocolos para pautas ligadas à segurança pública, algo que já acontece há longo tempo, por exemplo, quando se pensam em formas de midiatizar suicídios.

    Infelizmente, o foco no crime de Suzy fez com que se ofuscasse a história de outra
    fonte da reportagem. O depoimento de Lolla, de 35 anos, que cumpria os últimos dias
    da condenação por roubo, traz, simultaneamente, alento e preocupação. A esperança por um
    recomeço contrasta com a sensação de falta de liberdade para assumir sua identidade de
    gênero fora do presídio e pela falta de oportunidade no mercado formal de trabalho. Isso exige que Lolla se vista de palhaço nos semáforos para vender água mineral. Como parte do processo de reintegração social dela e da dignidade dessa fatia da população, políticas de crescimento do mercado formal de empregos mereceriam também, no mínimo, um tuíte do presidente.

    Publicado originalmente no Observatório da Imprensa, em 17/03/2020.

  • Desmaio na TV aberta e a “destruição da família brasileira”

    Desmaio na TV aberta e a “destruição da família brasileira”

    Em 17 de fevereiro de 2020, uma mulher desmaiou ao ser informada ao vivo, no programa Cidade Alerta (Rede Record), sobre o homicídio da própria filha. Segundo uma reportagem da Folha de S.Paulo, o programa acompanhava já há alguns dias o caso do desaparecimento de uma moça de 21 anos, grávida. O advogado do ex-namorado da vítima, responsável pela revelação da morte no programa, alegou que seu cliente havia confessado o crime de feminicídio e, inclusive, já teria levado a polícia ao lugar onde havia enterrado o corpo. Surpresa trágica para a mãe, nenhuma para os produtores que, antes da revelação, alegam ter dado à entrevistada a escolha de saber ou não ao vivo o que havia ocorrido com a filha. A consequência da óbvia resposta de uma mãe que não sabia do paradeiro da filha já havia nove dias resultou no desfecho da história.

    O assunto gerou reações de indignação nas redes sociais, dirigidas principalmente ao apresentador, Luiz Bacci, acusado de levar o sensacionalismo a níveis extremos. Longe de eximi-lo de sua parcela de responsabilidade, a decisão do Cidade Alerta não deveria ser personificada, mesmo que o gênero criminal tenha se consolidado no Brasil justamente a partir da forte presença da figura do âncora. É preciso sempre reiterar que televisão é uma atividade produzida em equipe e que a responsabilidade é solidária entre diversos profissionais que permitiram a exibição da fatídica cena, e também com a direção da empresa. Por isso, houve quem voltasse o descontentamento nas redes sociais à emissora, uma concessão pública cuja finalidade deve ser “educativa e cultural, mesmo em seus aspectos informativo e recreativo”¹. Em consonância com essa segunda abordagem, parece inacreditável que a emissora não tenha emitido sequer uma nota sobre o episódio ocorrido e, especialmente, sobre as diretrizes que deveria tomar para que episódios similares jamais tornassem a ocorrer em um dos principais produtos informativos do grupo Record.

    Quem teve que justificar o injustificável nas redes sociais foi o próprio apresentador. Via Instagram, reforçou o desejo da mãe em saber, em tempo real, o que havia acontecido com a filha, bem como alegou ter aprendido com a história, embora não tenha especificado exatamente o que tirou de lição. Um trecho, todavia, chamou a atenção: “as histórias não são conduzidas pela gente, mas por Deus”. Sob a rubrica de que a TV mostra aquilo que o público quer – e agora também o que Deus deseja -, violações éticas se naturalizam dia após dia em coberturas criminais e costumam ser problematizadas, essencialmente, em situações-limite como a exposta no primeiro parágrafo. É preciso reconhecer, por um lado, o esforço de setores sociais, das universidades à sociedade civil organizada, passando pelo campo dos produtores culturais, no estabelecimento de críticas à falta de qualidade na televisão e admitir, por outro lado, que o árduo trabalho, ainda que legítimo e essencial, produza poucos efeitos práticos quando se pensa em melhorias na programação. Este texto carrega essas duas perspectivas como essência: auxiliar na denúncia do episódio e aceitar que tal argumentação nada ou muito pouco sensibilizará os produtores.

    Uma questão de família

    A primeira onda de ataque das elites intelectuais à falta de qualidade na televisão data ainda dos anos 1960, período em que nasce também uma forma de preconceito contra as classes populares: o vínculo entre popularização da televisão e a queda no nível da programação. Segundo esse estigma, as classes populares seriam aficionadas por sangue e por tragédias alheias. Essa percepção cresceu reiteradamente desde a fase de transição para a redemocratização do país. A criação do SBT, em 1981, que retomou atrações da década de 1960 que foram praticamente banidas da televisão nos anos 1970, e a implantação do Plano Real, em 1993, responsável pelo aumento do poder de compra dos brasileiros e, consequentemente, do maior acesso a aparelhos televisores pelos mais pobres, são dois momentos-chave que reforçam o argumento.

    Esse tipo de alegação é defendido por produtores e mesmo por estudiosos de televisão, ainda que haja uma incipiência no país de pesquisas que voltem as atenções de fato para o público². O incômodo com essa situação fez com que o autor do presente texto produzisse uma pesquisa de doutorado no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) com telespectadores de dois noticiários criminais paranaenses (Balanço Geral e Tribuna da Massa).

    Na segunda e última parte do estudo, foram selecionados dezoito telespectadores assíduos dos dois principais noticiários criminais veiculados no Paraná. Essas pessoas deveriam, necessariamente, habitar uma das três regiões com mais crimes exibidos durante a primeira fase da pesquisa, um monitoramento de três meses dos programas (de outubro a dezembro de 2017). Buscou-se problematizar, na etapa de recepção, como essas pessoas produziam sentidos às narrativas criminais na vida cotidiana. Em outras palavras, por que, em síntese, davam credibilidade a programas que exibiam tragédias diariamente.

    As dificuldades que o público tem para memorizar os pormenores dos fatos, algo já identificado em muitas outras pesquisas voltadas ao fenômeno da recepção de conteúdos informativos, foi ratificada. Assim, apesar de assistirem no dia a dia aos programas, essas pessoas não costumam se recordar da maioria dos fatos veiculados. A incapacidade de memorizar a notícia em si, algo que supera questões de classe social, todavia, não impediu que os respondentes produzissem sentidos a partir dos crimes midiatizados. Nesse aspecto, vários participantes citaram situações genéricas quando questionados sobre a lembrança de crimes mostrados pelos telejornais. Episódios que envolvam a instituição família (ou suas derivações, como em crimes cujas vítimas são crianças) foram citados diretamente por dois terços dos entrevistados – houve ainda menções indiretas, como feminicídios, homicídio qualificado que, na maior parte dos casos, envolve vítimas pertencentes ao núcleo de convivência do agressor. A concepção de família, embora não seja a única, articula-se como a principal instituição a ser valorizada no eixo narrativo dos noticiários.

    O vínculo com a noção de família é tão estreito nesses programas que, na pesquisa, foi identificada a presença de um tipo de fonte não usual em outras abordagens jornalísticas. São indivíduos que mesmo sem presenciar o evento criminal ou poder contribuir objetivamente para a resolução do crime foram entrevistados. São parentes ou, no mínimo, pessoas muito próximas à família, que destacam características positivas e negativas na personalidade e no convívio social de, respectivamente, vítimas e agressores. Esse tipo de fonte aparece essencialmente nos noticiários enfatizando a “destruição da família” (não qualquer família, e sim aquela representada em comerciais de margarina), algo que ajuda a ratificar o argumento de que há produtos noticiosos que corroboram o princípio de que haja uma crise de valores na família. As consequências não são animadoras e, inclusive, ajudam a entender a aceitação de discursos entusiastas sobre a liberação da posse e do porte de armas de fogo, excludente de ilicitude, entre outras iniciativas contemporâneas relativas à segurança pública.

    A percepção iminente de risco à família faz com que essas narrativas produzam sentidos relevantes para parte dos entrevistados. As citações sobre família foram marcantes nas quase vinte horas de depoimentos, independentemente da recordação de eventos de violência. Alguns exemplos: “É o pai que mata o filho, é a filha que mata a mãe, é o neto que mata a avó pra pegar dinheiro”, disse um dos entrevistados. “As pessoas entrarem nas casas para matar um, dois, três… Filho matar o pai, onde é que se viu?”, completou outro. “Pai de família morre, direitos humanos não vão lá na casa dele não, mas se um policial matar um sem-vergonha em ponta da esquina, tão lá os ‘direitos dos manos’ em cima”, avaliou um terceiro entrevistado, que usa uma expressão corriqueiramente citada pelo apresentador do Tribuna da Massa, o programa preferido na hora do almoço pelo participante.

    Mesmo os temas que, a princípio, não estariam vinculados à concepção de família, aproximaram-se dela conforme as entrevistas avançavam. Tragédias no trânsito despertam a atenção de uma das entrevistadas, que teve o filho e o ex-marido mortos em acidentes: “Como tenho problemas de acidente na família, não gosto muito de ver acidente, mas assisto”. Situações de violência contra motoristas do aplicativo de transporte Uber são citadas como as que mais comovem outra participante do estudo. Ainda que seja uma força de expressão, já que durante o monitoramento não tenha havido nenhuma notícia envolvendo motoristas do serviço como vítima, a noção dela de que crimes contra esses condutores são diários tem mais relação com o próprio dia a dia do que com a exibição. No fundo, ela assiste ao noticiário essencialmente devido à percepção de risco que o marido enfrenta durante o trabalho. Um último exemplo: a mais nova entrevistada na pesquisa, à época com 17 anos, afirma que passou a acompanhar um dos noticiários inspirada na família de uma amiga do Ensino Médio que visitava com regularidade. Ela, que garantiu pertencer a uma família desestruturada por conta do vício em álcool do pai, percebia a família da amiga unida em torno do sofá e passou a adotar o hábito. O ato em nada tinha a ver com gostar de sangue, e sim com uma idealização de família.

    Os programas criminais dialogam com a família

    Surge também, na década de 1960, uma mudança de concepção no modo de se pensar televisão, que passou a ser considerada como uma esfera de relacionamento em detrimento ao caráter formativo hegemônico na programação dos anos 1950, período em que parte da elite intelectual do país criava expectativas positivas em relação ao então novo meio de comunicação. Essa descoberta foi essencial para que a televisão conseguisse desenvolver estratégias para engajar audiência. A transformação foi causada pela compreensão de como a tecnologia deveria se conciliar à vida cotidiana do público. De um produto experimental, responsável pelo acesso à cultura erudita, a televisão passou a se vincular à vida da maior parte da população.

    Entendida como um meio para ser consumido coletivamente, a televisão criou uma lógica na qual a programação passou a ser pensada, como explica Alexandre Bergamo, “a partir da sua gradativa adaptação à ‘rotina familiar’ e, principalmente, a partir de uma divisão de ‘horários’ que buscasse uma melhor articulação entre o trabalho e o lazer”. Vista até então como uma atividade de lazer noturna, a televisão passou a se adaptar à vida cotidiana do público, algo que, até certo ponto, inverte-se nas décadas seguintes após a consolidação do meio como integrante da rotina dos brasileiros de várias classes sociais.

    Ainda que os noticiários criminais sejam alvo de constantes e merecidas críticas, é inegável o poder que esse gênero tem de criar processos de identificação, sobretudo a partir da lógica familiar. A disseminação de preconceitos e a violação de direitos humanos proliferadas por noticiários criminais, conforme aponta uma pesquisa organizada pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi), foram incapazes de afetar o êxito editorial desses programas.

    Da filha de classe média alta que, com a ajuda do namorado e do irmão dele, assassina os pais aos genitores que defenestram a filha de um prédio, a noção de destruição da lógica familiar cria engajamento, logo, audiência. Por falta de identificação e por preconceitos enraizados na sociedade, crimes em regiões periféricas envolvendo negros, homossexuais e outros grupos marginalizados costumam ser ofuscados nas coberturas. Ganham notoriedade tão somente quando carregam em si algo a mais, como a deixa para transmitir ao vivo o anúncio do falecimento de uma filha à mãe.

    O contato diário com os programas criminais contribui de forma estruturante para visões de mundo nada progressistas dos entrevistados. As noções de justiça pelas próprias mãos, de apologia à violência policial e de incentivo a regimes de humilhação à população carcerária são hegemônicas dentro do grupo de entrevistados. Argumentos estruturados pelos discursos ligados à concepção de família.

    Um dos expoentes dos Estudos Culturais britânicos, Stuart Hall escreveu uma frase instigante: “O cão, no filme, pode latir, mas não consegue morder!”. Se o cão for representado por quem, com toda boa intenção, critica a televisão, infelizmente a frase é verdadeira. Caso sejam os produtores de noticiários criminais abordando a famigerada “tragédia da família brasileira” e ditando pensamentos retrógrados, a frase ganha contornos de ficção.

    ¹ Decreto nº 52.795, de 31 de outubro de 1963. Acesso em: 23 fev. 2020.
    ² Os esforços do Núcleo de Pesquisa Recepção e Cultura Midiática, coordenado pela professora Nilda Jacks na UFRGS, demonstram o baixo número de pesquisas de pós-graduação de recepção midiática no país. As investigações voltadas à recepção de produtos jornalísticos, praticamente inexistentes nos anos 1990, com duas dissertações, atingiram a marca de 54 trabalhos no período entre 2000 e 2009. Entre 2010 e 2015, o número já havia atingido 46 pesquisas (43 de mestrado e três de doutorado).

    Publicado originalmente no Observatório da Imprensa, em 26/02/2020.

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