Categoria: Opinião e análises

  • Vitória dos Quilombolas de Alcântara e dos Direitos Humanos

    Vitória dos Quilombolas de Alcântara e dos Direitos Humanos

    Para implantação da base de lançamentos, centenas de famílias quilombolas foram remanejadas de seus territórios (Crédito foto: Sgt Bianca /Força Aérea Brasileira)

    A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) condenou o Brasil por violações graves aos direitos das comunidades quilombolas de Alcântara, no Maranhão. A decisão histórica, anunciada em 13 de março de 2025, representa um marco na luta dessas comunidades por reparação, que há décadas enfrentam deslocamentos forçados e compulsórios, perda de territórios tradicionais e violações sistemáticas de seus direitos, incluindo propriedade coletiva, livre circulação, autodeterminação, consulta prévia, proteção familiar, alimentação, moradia, educação, igualdade perante a lei e proteção judicial.

    O caso remonta aos anos 1980, durante o governo José Sarney, quando o Brasil iniciou a implantação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), destinado a atividades aeroespaciais. Para dar espaço ao projeto, centenas de famílias quilombolas foram removidas à força de suas terras, sem consulta prévia ou compensação adequada. Essas comunidades, que mantêm uma relação ancestral com o território, viram progressivamente suas culturas, modos de vida e direitos fundamentais serem violados em nome de um ideal ufanista de “desenvolvimento”, em um processo que foi marcado por ameaças constantes de ampliações da área de desapropriação.

    Na decisão, a Corte IDH destacou que o Brasil falhou em garantir o direito à consulta livre, prévia e informada, conforme estabelecido pela Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o país é signatário. Além disso, a Corte apontou a ineficiência do Brasil em garantir o direito à proteção jurídica às comunidades quilombolas. As denúncias feitas pelo Movimento dos Atingidos pela Base Espacial (MABE) levaram o Ministério Público Federal do Maranhão instalou o Inquérito Civil Público nº 08.109.000324/99-28 para apurar irregularidades na implantação da base de lançamentos e a Ação Civil Pública 2003.37.00.008868-2-ACP, que tramita na Justiça Federal do Maranhão contra a Fundação Cultural Palmares e União, cobrando a titulação do território étnico. Entretanto, todas as ações judiciais se mostraram infrutíferas. Diante da ausência de resultados no sistema judiciário brasileiro, as famílias afetadas recorreram ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos como última esperança de justiça.

    A decisão não apenas responsabiliza o Estado brasileiro, mas também estabelece medidas de reparação. Entre elas, estão a garantia da posse coletiva das terras quilombolas, demarcando e titulando 78.105 hectares de terra, a implementação de políticas públicas para o desenvolvimento sustentável das comunidades e a criação de um fundo de reparação para as famílias afetadas. A Corte também exigiu que o Brasil adote medidas para evitar que violações semelhantes ocorram no futuro, determinou a instalação de uma mesa de diálogo permanente, e a realização de um ato público de reconhecimento de responsabilidade por parte do Estado.

    Esse processo, que tramitou por mais de duas décadas, só foi possível graças ao protagonismo de dezenas de homens e mulheres quilombolas, que dedicaram suas vidas e conhecimentos, nos últimos 40 anos, a resistir a todas as formas de opressão impostas pelo projeto desenvolvimentista. Sua luta incansável, organizada e coletiva foi essencial para levar o caso à Corte Interamericana e garantir que suas vozes fossem ouvidas em âmbito internacional nos dias 23 e 24 de abril de 2023, quando o caso foi levado a julgamento em Santiago, capital do Chile.

    Movimento dos Atingidos realizou a Campanha Alcântara é Quilombola (Créditos: MABE Divulgação)

    A vitória dos quilombolas de Alcântara na Corte Interamericana representa também um marco histórico para todos os movimentos sociais brasileiros, pois o caso expõe de forma contundente como o Estado tem tratado suas comunidades tradicionais e povos originários: priorizando interesses econômicos predatórios e projetos de “desenvolvimento” que ignoram e violam direitos sociais e territoriais. A decisão não apenas responsabiliza o Brasil por essas violações históricas, mas também reforça a indissociabilidade da luta racial, social e ambiental, evidenciando que o componente racial foi um fator determinante na morosidade e na ineficácia do sistema judicial brasileiro em apurar e julgar as denúncias feitas pelas comunidades desde a década de 1980.

    Para as comunidades quilombolas de Alcântara, a decisão representa um passo importante na busca por reparação. No entanto, acredito que a implementação das medidas determinadas pela Corte IDH será ainda um desafio que vai exigir mobilização, vigilância e pressão constante dos moradores de Alcântara, dos movimentos sociais e das instituições que historicamente trabalham em prol da causa quilombola. Lembremos, como escreve Joaquin Herrera Flores, que as conquistas dos Direitos Humanos estão num campo de disputas permanente, pois, “os direitos humanos, mais que direitos ‘propriamente ditos’, são processos; ou seja, o resultado sempre provisório das lutas que os seres humanos colocam em prática para ter acesso aos bens necessários para a vida”.

    Apesar de tudo, a vitória na Corte IDH serve como um lembrete a todos os que acreditam nos direitos humanos de que a luta é árdua e longa, mas não impossível, e a resistência e o protagonismo das comunidades quilombolas foram e continuam sendo fundamentais para construí-la. Essa decisão histórica é uma vitória não apenas para os quilombolas de Alcântara, mas para todos que defendem, como orienta Herrera Flores, que os direitos humanos sejam a base essencial da democracia e da justiça.


    Marisvaldo Lima

    Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da UFSC; pesquisador em jornalismo e direitos humanos com foco em questões sociais e étnicas; membro do grupo Direitos Humanos e Jornalismo (DHJor).

  • Dia da Consciência Negra: das cotas nas universidades públicas às vozes negras no jornalismo

    Dia da Consciência Negra: das cotas nas universidades públicas às vozes negras no jornalismo

    Nesta segunda-feira (20), celebramos o Dia da Consciência Negra, uma data importante para refletir sobre a história e cultura do povo negro brasileiro. É também oportunidade para se debruçar sobre questões contemporâneas que permeiam a nossa luta por dignidade, como o histórico debate que acontece dentro dos movimentos negros sobre a necessidade de fomentar equidade racial nos diversos espaços de poder.

    O combate às desigualdades no acesso ao ensino superior se tornou uma pauta importante do movimento negro pelo menos desde a década de 1970, quando ativistas e intelectuais reconheceram este ambiente como estratégico para a inclusão social. Abdias do Nascimento (1914-2011), ator, escritor, ativista e político, já reivindicava na década de 1980 (quando foi deputado federal) a existência de medidas compensatórias para a população negra após séculos de discriminação e escravização. Entre as medidas propostas por ele, estavam bolsas de estudos, reserva de vagas no ensino superior e no serviço público e incentivos às empresas privadas que garantissem a inclusão de pessoas afrodescendentes em seus quadros funcionais.

    Ações afirmativas

    Entre avanços e muitos retrocessos na discussão desta temática nos ambientes deliberativos ao longo de décadas, as cotas raciais no ensino superior foram finalmente instituídas em 2012, quando o governo brasileiro aprovou por meio da Lei nº 12.711/2012 que 50% das vagas nas universidades públicas e institutos federais fossem reservadas para a política de Ações Afirmativas [1] e, desde então, o perfil da universidade brasileira passou por uma grande modificação: pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência deixaram de ser casos de excepcionalidade e passaram a tomar assento regular e progressivo nos diversos cursos de graduação.

    Essa conquista, fruto das reivindicações dos movimentos sociais, não ocorreu sem duras críticas. As cotas – e os cotistas – passaram a ser alvo de uma intensa campanha de monitoramento e avaliação minuciosas de desempenho durante toda a última década. Diversos estudos acadêmicos foram conduzidos para acompanhar a efetividade da Lei de Cotas, como ficou conhecida, e comprovaram os benefícios das Ações Afirmativas para o acesso e inclusão de estudantes de grupos historicamente sub-representados nas instituições de ensino superior. Mesmo que ainda que resistam argumentos contrários às cotas, principalmente aqueles ancorados essencialmente no mito da democracia racial e na meritocracia, as cotas possuem o mérito inegável de garantir inclusão social e equidade racial e contrariaram aqueles que advogavam que sua implementação diminuiria o rendimento acadêmico das universidades [2].

    Esta transformação não é puramente demográfica, mas está enraizada nos novos valores e visões de mundo que chegam à universidade por meio dos discentes. Pergunte a qualquer professor que esteja na ativa há pelo menos 20 anos em uma universidade pública e você comprovará que a mudança não está somente na tonalidade da pele que observam nas turmas em que lecionam, mas também nas demandas e interesses apresentados por esses estudantes.

    Ao longo da última década, a universidade enegreceu e em 2019, o número de pretos e pardos chegou a 50,3% dos estudantes matriculados nas instituições púbicas de ensino superior. O jornalismo também enegreceu com ela, ainda que essa área profissional precise avançar muito no que diz respeito a garantir uma representatividade racial quantitativa.

    Na última década, o percentual de negros (autodeclarados pretos e pardos) entre os jornalistas brasileiros que responderam à Pesquisa do Perfil do Jornalista Brasileiro saltou de 23% (em 2012) para 30% (em 2022). Esses números se mostram ainda inferiores ao registrado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 56% da população brasileira formada por negros, mas representam um avanço significativo na busca por uma maior representatividade no jornalismo (ou pelo menos entre os jornalistas). Os números demonstram que será necessário um esforço contínuo para criar ambientes inclusivos, combater a discriminação e garantir oportunidades para o desenvolvimento profissional de pessoas negras no jornalismo. A universidade enegreceu, o perfil geral dos estudantes enegreceu, mas o jornalismo ainda precisa enegrecer, particularmente no que diz respeito às vozes, perspectivas e experiências da comunidade negra.

    Precisamos de mais vozes negras, mas também precisamos evitar a “guetificação” que pode restringi-las a certos temas ou contextos específicos, que pode incorrer na cristalização de “territórios naturais” para fontes e jornalistas negros e que pode perpetuar narrativas estereotipadas. Precisamos ler, ver e ouvir mais repórteres negros, mas também precisamos de lideranças negras nos espaços de tomada de decisão nas organizações jornalísticas. O desafio é, portanto, não apenas aumentar a visibilidade da população negra, mas também assegurar que essas vozes sejam genuinamente integradas ao jornalismo, da produção de conteúdo às decisões estratégicas, e obviamente a sua superação não depende somente de uma política pública.

    A política de cotas nas universidades públicas brasileiras, que foi revisada este ano pela Lei n° 14.723/2023 e sancionada pelo presidente Lula no último dia 13, atualiza critérios que passaram a incluir também estudantes quilombolas na distribuição das chamadas “subcotas”. Ela é uma das medidas que podem ajudar que a universidade continue a enegrecer e a acompanhar a diversidade da composição populacional brasileira, com impactos positivos a longo prazo na formação profissional e acadêmica. Apesar de, isoladamente, as cotas não resolverem a complexa situação de representatividade étnica no jornalismo brasileiro, elas são parte importante deste processo, uma oportunidade fundamental para que a futura geração de jornalistas reflita a pluralidade de nossa sociedade.


    [1] Mesmo antes da implementação da Lei, algumas universidades brasileiras como a UERJ (em 2002) e UNB (em 2003) já haviam criado inciativas internas, destinando um percentual de vagas do vestibular para candidatos autodeclarados negros e para indígenas.

    [2] Neste artigo que apresentei recentemente no Congresso de Pesquisadores Negros da Região Sul, faço um apanhado de estudos que comprovam a eficácia social e acadêmica das cotas nas universidades públicas.

  • Violação a direitos humanos de pessoas com deficiência aumenta 150%

    Violação a direitos humanos de pessoas com deficiência aumenta 150%

    Duas décadas depois de o atendimento prioritário ser garantido a pessoas com deficiência no Brasil, pela Lei 10.048/2000, o jornalista e mestrando no Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGJor/UFSC) Luiz Henrique Zart ainda enfrenta olhares constrangedores e precisa se justificar para exercer um direito assegurado pela legislação. Zart tem mobilidade reduzida em razão de uma paralisia cerebral e, recentemente, foi questionado pela funcionária de um mercado onde fazia compras, na cidade de Lages, serra catarinense, por estar na fila preferencial.

    “Ter que me explicar e convencer as pessoas que eu tenho uma deficiência e que é meu direito ser atendido no caixa preferencial é um exemplo simples, cotidiano, que ilustra o quanto as violações se dão não apenas por meio de barreiras físicas, mas ocorrem também pelo constrangimento simbólico, pela invalidação”, afirma. Por contar com um suporte familiar que o protege de muitas violações, ele nunca chegou a fazer uma denúncia formal.

    Essa rede de apoio atrasa as violações de me acontecerem, mas pode ser também pelo cansaço. É cansativo lutar contra a estrutura. Já basta ter que lutar pela sobrevivência; estar sempre alerta para avisar as instituições que elas precisam garantir um direito que é teu é cansativo e o cansaço, muitas vezes, impede a denúncia.

    Luiz Henrique Zart, mestrando em Jornalismo

    Mesmo se tratando de um processo exaustivo, as denúncias de violação contra os direitos humanos de pessoas com deficiência aumentaram 150% de janeiro a setembro deste ano, em comparação com o mesmo período do ano anterior. Segundo o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, foram contabilizadas ao todo 51.777 denúncias por meio da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos – o Disque 100 – e registradas 307.484 violações. Cada denúncia pode conter mais de um tipo de violação.

    As mais relatadas foram exposição de risco à saúde, maus-tratos ou abandono; tortura psíquica e insubsistência afetiva; a desassistência em relação a direitos sociais, à saúde e alimentação. Também há casos de subtração de direitos civis, políticos e de liberdade individual, como retenção de documentos, acesso à informação e exercício de expressão e religião. Os estados com os números mais elevados são São Paulo (13.250 denúncias), Rio de Janeiro (6.726) e  Minas Gerais (6.031). Já Santa Catarina aparece em 9º lugar, tendo registrado 1.719 denúncias no período.

    Conforme publicado em maio deste ano, a necessidade de políticas de educação inclusiva, garantidas na Constituição Federal, tem sido pauta de audiências públicas.

    A bacharel em Direito Thais Becker, mestranda em Direitos Humanos na Universidade de São Paulo (USP), enfatiza que dar visibilidade a essas violações é fundamental para a construção de políticas públicas, sempre em diálogo com as próprias pessoas com deficiência, a partir de um diagnóstico preciso de como e onde elas ocorrem. “Como o número de pessoas que denunciam ainda é baixo, a gente tem a falsa impressão de que acontece pouco, quando na verdade acontece muito”, diz ela, que é uma mulher com deficiência.

    “Escancarar esses dados é fundamental ainda para, no campo jurídico, responsabilizar quem ofendeu, o que pode se dar por meio de um processo educativo, entendendo o Judiciário também como um espaço de formação na perspectiva da antidiscriminação; e garantir indenização para quem foi submetido à discriminação”, acrescenta.

    O professor do Programa de Pós-graduação em Jornalismo da UFSC Jorge Kanehide Ijuim, que coordena o grupo de estudos Jornalismo e Direitos Humanos (DHJor), explica que a essência dos Direitos Humanos está na busca incessante pelo direito à dignidade humana, que, além de condições básicas, como o direito à vida, à saúde, à educação, ao trabalho com remuneração digna e à alimentação, também engloba o direito à igualdade e à diferença.

    “Devemos atentar como nos relacionamos com o Outro. Não basta reconhecer as diferenças, como não basta respeitar o diferente, temos que nos comunicar com o Outro, o diferente. É o que podemos chamar de alteridade. Sem esta, a busca pela dignidade humana se esvai, se perde em discursos vazios. É, portanto, uma questão de consciência que pode colaborar para a elevação da dignidade humana”.

    Jorge Kanehide Ijuim, professor do PPGJor/UFSC e um dos coordenadores do DHJor

    Ijuim ressaltou que a temática tem sido estudada – por um olhar interseccional e multicultural – pelo grupo que coordena. O objetivo é “justamente poder compartilhar nossas reflexões – na academia, junto a outros jornalistas, na comunidade –, com a expectativa de que nossos esforços contribuam para a elevação de consciência num sentido mais coletivo”.

    Disque 100

    Violações de direitos de qualquer pessoa em situação de vulnerabilidade devem ser denunciadas ao Disque 100, que as analisa e as encaminha aos órgãos de proteção e responsabilização. O serviço pode ser acionado por meio de ligação gratuita – discando 100 em qualquer aparelho telefônico; pelo e-mail ouvidoria@mdh.gov.br ou pelo site da Ouvidoria e seus canais de WhatsApp e Telegram. O atendimento pode ser feito na Língua Brasileira de Sinais (Libras)

  • Anuário sobre segurança pública recebe cobertura monotemática

    Anuário sobre segurança pública recebe cobertura monotemática

    É bastante comum que textos de crítica de mídia reforcem a falta de variedade, tanto sob o ponto de vista quantitativo quanto qualitativo, de fontes de informação nos textos, bem como a ausência de dados capazes de contextualizar o fenômeno midiatizado. A divulgação do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, na última quinta-feira (20), repercutiu na imprensa brasileira — e, potencialmente, seria um recurso capaz de ampliar, sob o viés qualitativo, o debate sobre o tema.

    Veículos das mais diversas linhas editoriais deram ênfase ao assunto e alguns recortes homogeneizaram as notícias que se detiveram à cobertura. Entre eles, a redução global do número de mortes violentas intencionais e a ampliação dos casos de violência sexual, das vítimas de armas de fogo, violência e de estelionatos via internet. Além disso, apareceram recortes mais corriqueiros: listas de municípios, estados e regiões “menos” e “mais violentas” a partir das taxas de homicídios e outros ganchos mais locais. O documento, contudo, explora diversas outras facetas que, por um ou mais motivos, foram pouco ou nada exploradas jornalisticamente.

    Para tentar entender parte deste cenário, foi realizada uma busca no Google (22/07/2023) com a palavra-chave Anuário Brasileiro de Segurança Pública (sem aspas) e, em seguida, houve a filtragem na aba notícias, restritas ao período dos últimos sete dias. Para este levantamento foram consideradas as cinco primeiras páginas de busca do Google. O número parece satisfatório, pois, de acordo com o estudo O cenário do SEO na América Latina, realizado pela agência Sherlock, de 2021, em 58% das buscas no Google, usado por 97% da população brasileira, os usuários não passam da terceira página do buscador. Além disso, foram excluídos ainda sites que, apesar da filtragem da categoria notícias, são ligados a instituições públicas, como a Casa Civil, a agências de notícias de governos (ainda que replicações de releases tenham sido consideradas), sindicatos, entre outros exemplos.

    Ao todo, foram selecionados 37 resultados, que incluem notas (textos que, independentemente do tamanho, ficaram restritos aos dados do Anuário, sem desdobrar o tema com outras fontes), notícias (materiais que, além do estudo-base, tiveram acréscimos de fontes oficiais, especializadas — inclusive, dos próprios organizadores do estudo — e personagens, mas que se detiveram ao tema central), colunas (textos opinativos periódicos que visam interpretar os dados) e até uma produção voltada diretamente para a rede social TikTok.

    A princípio, foi criada a categoria reportagens, que contemplaria iniciativas jornalísticas que buscavam desdobrar o tema em mais fontes e, além disso, que focassem em causas e consequências, na complexificação das situações e na elaboração de políticas públicas para além de medidas ostensivas. Como há intenção de acompanhar os resultados de busca pelo período de um mês da publicação do relatório, a categoria, que exige de fato maior tempo para a produção, está no radar de análise.

    Cobertura jornalística (até aqui) do Anuário Brasileiro de Segurança Pública

    Este texto trata de um primeiro recorte para entender como veículos jornalísticos bem listados no Google lidam com a extração de pautas a partir do relatório divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Há consciência de que algumas questões centrais para se produzir materiais mais elaborados, como aqueles que se voltem, por exemplo, ao trabalho de humanização desses dados, são difíceis de serem computados. Contudo, como o próprio tema tende a ser explorado e, à medida que o tempo avance, haja menos apelo de visibilidade (gancho jornalístico), a publicação do relatório passa a ser um momento chave para a incidência de bons trabalhos.

    No levantamento inicial observa-se forte divisão entre produtos jornalísticos cujos títulos puxam para ganchos locais/regionais (20 menções) e nacionais (17 menções) — há um gancho internacional, justamente no material divulgado para a rede social TikTok, um vídeo que viralizou nas redes sociais sobre roubo de celular na Itália. Já em relação à abrangência dos fatos reportados, isto é, às regiões onde a notícia reporta informações que possam interessar ao público, a divisão também permanece: há certa sobreposição de temas que aguçam a curiosidade nacionalmente — isso pode, por um lado, revelar uma questão ligada aos algoritmos do Google, o que pode demonstrar uma dificuldade para que iniciativas locais consigam ganhar visibilidade nas páginas mais importantes do buscador.

    Quando se olha para o que os sites têm reportado sobre o Anuário, outra questão bastante complexa é a falta de fontes complementares, que ajudem a ampliar a compreensão sobre o fenômeno. Um a cada quatro materiais publicados são notas que apenas replicam alguns dados do relatório — e que sequer disponibilizam o link do estudo original.

    Se as notícias ocupam metade das menções disponibilizadas nas cinco primeiras páginas do buscador, por outro lado, a variedade de fontes que vão além do relatório produzido pelo FBSP é irrisória: das 20 notícias selecionadas, metade contém apenas uma fonte complementar. Com exceção de uma dessas notícias, todas estão restritas a forças ostensivas de segurança ou, em menor número, ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, pasta comandada por Flávio Dino (PSB). Especialistas não diretamente ligados ao campo da segurança pública só ganham espaço em textos com três fontes consultadas (ainda que a prevalência da voz das instituições policiais seja regra).

    Mal listadas no ranking do Google, com apenas seis resultados, colunas, entrevistas e outros gêneros que fogem do binômio nota-notícia parecem preencher espaços que o gênero notícia não é capaz. Embora não seja regra no material lido, apenas nesses tipos de produtos informativos há espaço para olhar para o fenômeno da violência e, consequentemente, da segurança pública, por um viés interseccional, isto é, que avalie a situação e não a reduza à questão da violência em si. Ainda assim, como era de se esperar, a mera transposição de números não é suficiente para entender a complexidade do fenômeno — no único caso onde uma fonte personagem foi consultada, o relato se restringe aos pormenores da ação de violência sofrida. A ausência de ações transversais, ou seja, que superem o âmbito ostensivo de enfrentamento às formas de violência, também chama bastante a atenção nesta primeira sondagem.

    Afinal, o que foi e o que não foi explorado jornalisticamente?

    A versão recém-publicada mostrou que no ano passado, 47.508 brasileiros e brasileiras foram vítimas de mortes violentas intencionais, soma de vítimas de homicídios dolosos (quando há intenção de matar), latrocínio (roubo que resulta em morte), lesão corporal seguida de morte e intervenções policiais em serviço e fora. Embora a taxa tenha caído de 24 para 23,4 mortes violentas para cada grupo de 100 mil pessoas (uma queda de 2,4 pontos em relação ao ano anterior), a menor registrada desde 2011, o país, que detém menos de 3% da população mundial, concentra um a cada cinco homicídios cometidos no planeta.

    Organizado pelo FBSP, o Anuário pode servir como um importante recurso estatístico para veículos de imprensa tratarem a violência para além das singularidades de fatos isolados. Na atual edição, reconhecem os organizadores, há algumas limitações devido ao próprio atraso de dois anos na divulgação do Censo Demográfico, que deveria ter sido realizado em 2020. E esta é uma ausência bastante significativa quando se pensa em questões que poderiam ser exploradas jornalisticamente.

    Para ficar em um exemplo, com uma população de 203 milhões de habitantes, 10 milhões a menos do que a estimada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as taxas de homicídios dos últimos anos, alerta o estudo, sofrerão mudanças que só poderão ser identificadas após uma revisão do IBGE para as populações estimadas nos últimos anos. Para o ano de 2021, contudo, o próprio FBSP realizou, por meio do método de interpolação linear, uma estimativa da população. Os dados, explicam os organizadores, devem ser recalculados no próximo anuário com base no trabalho de revisão do IBGE.

    A letalidade das forças policiais, responsáveis por uma a cada cinco mortes violentas no Brasil, um indicativo de que há um estado paralelo que permite a aplicação da pena de morte, é outra ausência bastante sentida no levantamento. A questão das pessoas desaparecidas — e que poderiam, inclusive, aumentar a responsabilidade do estado no número total de mortes — também é um fato pouco trabalhado (apenas uma notícia se deteve a isso).

    Questões ligadas a racismo e a violência contra a população LGBTQI+, entre outros crimes de ódio, também tiveram repercussão mínima. Outras, mais ligadas à falta de efetividade do estado, como o esclarecimento de homicídios e à segurança privada foram completamente invisibilizadas jornalisticamente, assim como gastos com segurança pública (apenas um material, reproduzido de agência de governo, que enaltece o investimento de um estado da região centro-oeste). Quando se olha para os sistemas prisional e socioeducativo, o cenário fica ainda pior. Nenhum resquício.

    Contudo, mais que a ausência de alguns recortes está o enfrentamento às pautas por um viés mais humano. A ausência de gente comum nos relatos faz com que o jornalismo perca uma de suas principais potencialidades: o diálogo.

  • “A escola está ruim para todo mundo, mas só pedem aos estudantes com deficiência que se retirem”

    “A escola está ruim para todo mundo, mas só pedem aos estudantes com deficiência que se retirem”

    A educação especial direcionada a estudantes com deficiência voltou a ser debatida no Senado Federal. O assunto, que foi rechaçado em dezembro de 2020 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), é tema de um ciclo de três audiências públicas conjuntas realizadas este mês pela Comissão de Educação, Cultura e Esporte e a Comissão de Assuntos Sociais da Casa Legislativa.

    Um dos principais argumentos de quem defende a implementação desse tipo de educação é o direito de escolha dos responsáveis, que poderiam decidir matricular filhos e filhas com deficiência em uma escola regular ou em uma escola especial, voltada apenas a estudantes com deficiência. Também alegam que a educação inclusiva, prevista da Constituição Federal de 1988, não foi consolidada em muitas escolas regulares e, por isso, alunos e alunas com deficiência acabam não tendo nesses espaços atendimento que contemple a diversidade de suas características.

    Se a inclusão prevista na legislação brasileira e em acordos internacionais não saiu plenamente do papel, desistir dela é abrir caminho para que crianças e jovens com deficiência sejam segregados na vida escolar, ferindo o direito deles e também o direito de estudantes sem deficiência à convivência, à diversidade.

    Significa privar tanto alunos e alunas com deficiência quanto aqueles sem deficiência de conhecer e compartilhar a humanidade real, com suas múltiplas formas — legítimas — de existência.

    Durante uma das audiências no Senado, a jornalista Mariana Rosa, que também é mestranda em Educação e mãe de Alice, uma menina com deficiência, ressaltou que se o Estado não tem garantido acesso à escola, à saúde e à assistência social como deveria as razões não têm a ver com os corpos com deficiência. Estão relacionadas a “um projeto de exclusão e segregação que não tem deixado que o dinheiro do Fundeb [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação] chegue à escola; não permite que os investimentos na sala de recursos multifuncionais e a implementação do serviço de atendimento educacional especializado aconteçam”.

    Ainda segundo ela, que também é fundadora do Instituto Caue, comprometido com o anticapacitismo e a justiça social, é esse mesmo projeto de exclusão e segregação que está lotando as salas de aula; que não paga salários decentes aos professores e não investe na formação dos profissionais. “A escola está ruim para todo mundo, mas só pedem aos estudantes com deficiência que se retirem de lá”.

    Ainda durante a audiência, Mariana questionou os interesses que sustentam a segregação e fazem com que as pessoas com deficiência e suas famílias, “em vez de terem garantidos seus direitos à vida digna, dependam de favor de instituições filantrópicas, cujos serviços são estimados por muita gente, mas isso não é escolarização”. Ela ainda finalizou sua fala com um apelo aos parlamentares:

    “A segregação não é mais uma alternativa, é uma ilegalidade, um crime. Para que essa página seja definitivamente deixada para trás, a gente precisa que os senhores parlamentares protejam as crianças e cuidem das escolas, provendo projetos de lei que fortaleçam a escola pública e não retirem recursos dessas escolas”.

    Mariana Rosa, jornalista e mãe da Alice

    A educação inclusiva já vinha sendo atacada durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que tentou implementar a Política Nacional de Educação Especial, por meio do Decreto 10.502/20. O texto previa a matrícula de crianças e adolescentes com deficiência em classes e instituições separadas dos demais estudantes. O decreto foi suspenso pelo plenário do STF. Após uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, o Supremo considerou que ele fragilizaria o imperativo constitucional da inclusão de alunos com deficiência na rede regular de ensino.

    No julgamento, o relator, ministro Dias Toffoli afirmou que “o paradigma da educação inclusiva é o resultado de um processo de conquistas sociais que afastaram a ideia de vivência segregada das pessoas com deficiência ou necessidades especiais para inseri-las no contexto da comunidade”. E acrescentou que transformar a exceção — educação em escolas e classes especializadas — em regra representaria “além de grave ofensa à Constituição de 1988, um retrocesso na proteção de direitos desses indivíduos.”
    O tema também mereceu especial atenção do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que revogou o decreto assinado por Bolsonaro em 2020 em uma das suas primeiras decisões depois da posse (Decreto 11.370/23).

    Se, como afirmou o pesquisador Romeu Kazumi Sassaki no livro Inclusão: construindo uma sociedade para todos (Editora WVA, 1999) — uma das principais referências sobre inclusão de pessoas com deficiência e acessibilidade no Brasil —, a sociedade inclusiva “se pauta nos seguintes princípios: celebração das diferenças, direito de pertencer, valorização da diversidade humana e solidariedade humanitária”, é preciso garantir o acesso e a permanência digna de estudantes com deficiência na escola regular; jamais deixá-los fora, apartados, segregados de onde está a geração à qual pertencem e com a qual devem ter assegurado o direito de conviver.

    Com informações da Agência Senado e da Agência Brasil.

  • Boaventura de Sousa Santos em retrato preto e branco

    Boaventura de Sousa Santos em retrato preto e branco

    Conheci Boaventura de Sousa Santos pessoalmente em dezembro de 2012. Fui apresentado a seus escritos mais de dez anos antes, durante o doutorado na Escola de Comunicações e Artes da USP. Com a oportunidade de cumprir estágio pós-doutoral em Coimbra, decidi examinar sua obra para verificar como suas ideias poderiam me ajudar a compreender o Jornalismo. Mais que isso, queria observar suas falas, seus olhares, seus gestos, sentir um pouco mais seu mod’ser. Aquele ano letivo europeu (2012-2013) foi fascinante, não só no aprendizado acadêmico, mas também para entender o que é ser brasileiro (embora em Portugal me confundiam com chino).

    Já nos congressos que participei em Portugal e Espanha, as contribuições do autor começaram a emergir, a colaborar para a elaboração de minhas argumentações na crítica aos modelos jornalísticos que me dispus a construir. No retorno ao Brasil, seus livros passaram a ocupar lugar de destaque em minha biblioteca e referência relevante em trabalhos para congressos e artigos de revistas científicas. Passei a ofertar disciplinas na pós-graduação que propunham refletir sobre seu pensamento para a compreensão do Jornalismo. Publicamos uma coletânea de ensaios com base em suas ideias. Tais reflexões propiciaram a criação do Grupo de Estudos Jornalismo e Direitos Humanos (DHJor).

    Soco no estômago – Primeiro o UOL, depois outros órgãos de imprensa. A notícia sobre o escândalo em Coimbra trouxe choque, indignação, frustração. O artigo que deu origem às denúncias de assédio sexual e extrativismo intelectual é avassalador, perturbador.

    The walls spoke when no one else would

    Publicado numa revista britânica, a riqueza de detalhes sobre o drama vivido por muitas mulheres – que deveriam ser acolhidas e orientadas para o melhor estudo – fere os olhos e a alma do leitor minimamente sensível. Uma agressão à inteligência de quem optou por estudar seus textos, como foi meu caso. Noites mal dormidas. Um soco no estômago!

    E daí, a casa caiu? Natalia Timerman escreveu um artigo bem interessante para o Universo UOL.

    O que fazer com livros e textos escritos por intelectuais assediadores?

    Do começo ao fim, a colunista faz questionamentos, provoca, incita. Finaliza de maneira genial:

    – Como mudar?

    – A mudança é individual, coletiva ou ambas?

    – O cancelamento favorece a mudança ou opera segundo a mesma lógica do que cancela?

    – Que bom seria ter todas essas respostas.

    Eu também não tenho respostas a todas as questões que me fiz desde aquele fatídico 11 de abril. O que eu sei é que não posso me envergonhar de ter acreditado na hipótese de o pensamento de Boaventura colaborar para a melhor compreensão do Jornalismo. Não posso me envergonhar de ter levado minhas reflexões a artigos, disciplinas que ministrei, livro que publicamos, alunos que orientei. Mas tenho consciência de que não sou seu cúmplice. Seus livros não estão mais no primeiro plano de minha biblioteca. Foram para a quinta estante. Vou recorrer a eles? Ainda não sei se vou e, se sim, como.

    Cancelamento total e imediato? Talvez não! Tento acreditar que as investigações na Universidade de Coimbra aconteçam com apurações sérias e transparentes.

    Fazendo um retrospecto, penso: o que vou fazer da noção de razão indolente? do pensamento abissal? da sociologia das ausências e das emergências? Boaventura me abriu portas, caminhos para conhecer pensadores dos estudos decoloniais, para encontrar Frantz Fanon, Anibal Quijano, Maldonado-Torres. Inspirou meu diálogo com Edward Said, Silvio Almeida, Lélia Gonzalez, Abdias Nascimento.

    Tenho esposa e uma filha de 25 anos. Não admito assédio sexual a elas como não admito a qualquer pessoa. Também considero reprovável qualquer forma de apropriação intelectual – no meu entender uma atitude tão grave quanto o assédio. Eu continuo “do outro lado da linha abissal”.

    O esforço, lá em 2012, para olhar nos olhos de Boaventura não me permitiram imaginar tal situação. O fato é que a sua imagem, antes em quatro cores, agora está esmaecida… e não passa de um retrato em preto e branco – em alto contraste.

    Como gosta de escrever Ricardo Kotscho, vida que segue… com serenidade, senso crítico e vigilância.

    Publicado originalmente no blog Ijuim Shinbum.

  • Meu encontro com Rubem Alves e a força para “transbordar”

    Meu encontro com Rubem Alves e a força para “transbordar”

    “20 de outubro de 2001, 7h45, Campo Grande, Auditório do Colégio Dom Bosco. Aguardava com grande expectativa a palestra do psicanalista, escritor e educador Rubem Alves. Como faltavam ainda alguns minutos, quis fumar um último cigarrinho antes da palestra; encontrei uma ampla sacada ajardinada, que dava para o pátio do colégio. Saboreando meu vício maldito, ali me ocorreu uma das raras vantagens de ser fumante: olhei para o lado e lá estava o próprio convidado, observando o ambiente, sozinho, com exclusividade para mim”.

    Este relato originalmente compôs o último texto da minha tese de doutorado (1), que defendi em 2002. Retomo aqui com um excerto daquele escrito porque considero um momento oportuno e necessário para revisitar a “força de vida” de Rubem Alves e um de seus grandes inspiradores: Nietzsche.

    “Havia tempo que eu tinha uma grande curiosidade sobre um detalhe em sua obra: a referência intensa e carinhosa a Nietzsche (2). Estava com a questão no bolso do colete para apresentá-la após a palestra, no debate. Mas estávamos ali, lado a lado, e eu não queria perder essa oportunidade singular. Apaguei o cigarro, aproximei-me, cumprimentamo-nos e comecei ‘quebrando o gelo’ com algumas de suas paixões – falamos sobre jardinagem e culinária. No momento oportuno, coloquei a questão.

    Com o entusiasmo e a ênfase que lhe são peculiares, Rubem Alves argumentou que sente em Nietzsche uma força de vida extraordinária. Explicou que, quando Nietzsche descobre sua doença e sente estar caminhando para a morte, esta vontade de viver fica ainda mais evidente em seus escritos. Alertou sobre as traduções em que o Übermensch leva o significado de ‘super-homem’ ou ‘além-do-homem’ quando, segundo o seu entendimento, a tradução mais correta seria ‘homem transbordante’, que age não a partir daquilo que a sociedade cristalizou como moral, mas a partir da sua própria riqueza e exuberância. O ‘homem transbordante’ faz de sua vida uma permanente luta, inconformado, em oposição à moral do escravo e a do rebanho.

    Fascinado com sua argumentação, fui ainda mais eufórico para o auditório, convencido de que, mais uma vez, nessa oportunidade, Rubem Alves não plantou uma semente, mas plantou esperança“.

    É inegável a força de vida inspirada por esses pensadores: Alves e Nietzsche.

    Em 2018, abrimos uma página sombria de nossa história. Decorrência de vários episódios estranhos desde atos de 2013, passando pelos desastres promovidos pela Lava-jato, a criminalização da política e o processo de impeachment de Dilma, a onda de extrema-direita levou ao poder o excrementíssimo presidente atual. A partir de 1º de janeiro de 2019, a vida brasileira tornou-se um pesadelo constante: cortes de recursos em todas as áreas essenciais, falência das políticas públicas em defesa dos segmentos fragilizados, ataques à imprensa e aos jornalistas, agressão às instituições republicanas. Ao acessar o noticiário, a população (aquela que não fica restrita às redes sociais) acostumou-se a termos como fake news, negacionismo científico, revisionismo histórico, atos antidemocráticos, familícia, Micheque, gabinete do ódio, centrão, desmatamento e queimadas ilegais, invasão de mineradores a terras indígenas, offshore, volta da inflação, desvalorização do real…

    Com o anúncio da pandemia do novo corona vírus agravou-se o quadro – que temos pavor de relembrar e repetir aqui. Mas é preciso: movimento antivacinas, antimáscaras, atraso na aquisição de vacinas, mais de 600 mil mortes – centenas de milhares evitáveis. CPI da Covid, que transformou-se em luz de esperanças ao expor mazelas e revelar a latrina de corrupção instalada no Planalto Central. Que Brasil é esse, nos lembra Cazuza.

    Pensadores progressistas e alguns comunicadores de “pés no chão” nos ajudam a compreender este momento obscuro. Como já escreveu Mário Magalhães (3), 2018 está longe de terminar.

    Esta é a luta de nossas vidas. Por isso, renovo minhas esperanças e energias buscando inspiração em Rubem Alves e Nietzsche. Teremos que ser transbordantes, ter a força de vida para virar essa página de nossa história.

    ______________________________

    (1) Tese defendida na Escola de Comunicações e Artes da USP, depois publicada em livro pela Edufms/Edusc (2005) e pela Labcom Livros (2013).

    (2) Friedrich Wilhelm Nietzsche (Röcken, Reino da Prússia, 15/10/1844 – Weimar, Império Alemão, 25/08/1900) foi um filósofo, filólogo, crítico cultural, poeta e compositor. Escreveu vários textos criticando a religião, a moral, a cultura contemporânea, filosofia e ciência, exibindo uma predileção por metáfora, ironia e aforismo.

    (3) MAGALHÃES, Mário. Sobre lutas e lágrimas: uma biografia de 2018. Rio de Janeiro: Record, 2019.

    Publicado originalmente em Ijuim Shinbum, em 27/11/2021

  • O abraço que quase linchou virtualmente Drauzio Varella

    O abraço que quase linchou virtualmente Drauzio Varella

    Desde 1° de março, quando o Fantástico exibiu uma reportagem especial sobre a situação de transgêneros no sistema penitenciário, o médico Drauzio Varella é assunto recorrente nas redes sociais. Primeiro, foi elogiado pelo gesto empático ao abraçar uma transexual presa em 2010 e que não recebia visitas havia oito anos; depois, virou alvo de ataques porque teria omitido o crime que proporcionou a condenação.

    A exibição da reportagem levanta dilemas éticos relevantes quando se pensa no jornalismo que lida com o tema segurança pública: é obrigatório tipificar e detalhar os crimes quando se entrevistam detentos? O que romantiza mais: a não tipificação do crime ou o detalhamento pormenorizado das ações do criminoso? Trata-se de um recorte aceitável ou de uma manipulação? Antes de buscar contribuir para o debate – por uma perspectiva das produções de sentidos do público -, é preciso contextualizar o caso.

    A história de Suzy

    Em um país polarizado, Drauzio Varella – que já havia sido muito elogiado nas redes sociais após participação no programa Roda Viva, em 10 de fevereiro – praticamente virou unanimidade durante a primeira semana de março por ser um exemplo de altruísmo. Isso ocorreu porque o médico se sensibilizou durante a gravação de uma entrevista e abraçou Susy de Oliveira Santos, de 30 anos, condenada em 2010, que cumpre pena na Penitenciária José Parada Neto, em Guarulhos (SP), quando soube que ela não recebia visitas de familiares e amigos havia oito anos. O abandono foi interpretado como uma consequência de Susy ser transgênero, condição de outras 700 pessoas reclusas só no estado de São Paulo, conforme dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos apresentados pela reportagem do Fantástico.

    O gesto solidário do médico de 76 anos, que há trinta trabalha voluntariamente em prisões, chegou a gerar mobilizações que, por mais que possam ser consideradas pontuais, demonstram potencialidades do telejornalismo no que concerne ao poder de estreitar laços sociais. Uma reportagem do portal G1, em 7 de março, destacou que cinco dias após a exibição do material a presidiária já havia recebido 234 cartas, dezesseis livros e duas Bíblias, além de outros presentes. A mobilização, claro, não foi política e está longe de resolver o problema das pessoas transgênero nos presídios brasileiros, mas sensibiliza a sociedade a minimamente refletir sobre o tema. Diagnóstico dos procedimentos institucionais e experiências de encarceramento encomendado pela pasta da polêmica ministra Damares Alves diz que, das 508 unidades prisionais que participaram do estudo, somente 106 têm celas específicas para a população LGBT – e esse tipo de realidade, ainda que tenha sido apresentada parcialmente pela reportagem do Fantástico, já que a falta de celas específicas gera uma série de violações contra essas pessoas, só pode se alterar a partir da sensibilização da sociedade civil.

    Contudo, na tarde do dia seguinte, o caso sofreu uma reviravolta após o site O Antagonista publicar uma matéria que revelou os motivos pelos quais Suzy foi condenada,. A consequência da publicação pôs parcialmente em xeque a “imunidade” de Drauzio na internet, com a hashtag #drauziovarellalixo subindo nos trending topics do microblog Twitter. Segundo O Antagonista, a transexual foi condenada por homicídio qualificado e estupro de vulnerável de um menino de 9 anos. O texto descreve alguns dos detalhes: “Ele deixou o corpo da criança apodrecer em sua sala por 48 horas. O pai foi avisado pelo próprio assassino que o corpo putrefato fora deixado à sua porta”.

    Drauzio e, principalmente, a produção do Fantástico, foram acusados de manipulação e de protagonizarem a vitimização de uma criminosa impiedosa. Na esteira de ataques, o presidente Bolsonaro se manifestou via Twitter na segunda-feira, 9 de março: “Enquanto a Globo tratava um criminoso como vítima, omitia os crimes por ele praticados: estupro e assassinato de uma criança. Graças à internet livre, o povo não é mais refém de manipulações. Infelizmente, a Constituição não permite prisão perpétua para crimes tão cruéis”.

    Na noite anterior à manifestação presidencial, o Fantástico já havia divulgado uma nota na qual destacava que o objetivo da reportagem foi abordar as condições em que vivem transgêneros no sistema penitenciário brasileiro. Os apresentadores também leram uma nota de Drauzio em que ele dizia que sua área é a medicina, e não a judicial: “Por razões éticas, não busco saber o que de errado fizeram. Sigo essa atitude para cumprir o juramento que fiz ao me tornar médico e para não cair na tentação de traí-lo atendendo apenas aqueles que cometeram crimes leves”. Depois, o médico ainda publicou um vídeo em que explicava o recorte da reportagem e pediu desculpas à família do menino por envolvê-la indiretamente na história.

    A obrigatoriedade de tipificação de crimes

    As mudanças de percepções produzidas pela reportagem do Fantástico nessas duas semanas demonstraram de forma sistematizada algo identificado na pesquisa de doutorado deste autor, e que já foi tema de um texto no Observatório da Imprensa (edição 1076). No estudo de recepção com dezoito telespectadores assíduos dos dois principais noticiários criminais exibidos em Curitiba (Tribuna da Massa e Balanço Geral), precedido por um monitoramento de oitenta edições desses programas, observou-se o quanto os telespectadores demonstram maior ou menor empatia a partir do conhecimento da tipificação dos crimes e, principalmente, das descrições das ações cometidas por agressores e vítimas, estratégia narrativa presente nesses telejornais.

    Durante o monitoramento, houve a preocupação de dividir as 950 inserções noticiosas pela natureza e tipificação das transgressões. A representação da violência nesses noticiários é qualificada, essencialmente, em crimes contra a pessoa (39,6%) e contra o patrimônio (34,1%). Distantes, violações relacionadas ao tráfico ilícito de drogas (6,1%) e contra a dignidade sexual (5,2%) ocupam, respectivamente, a terceira e quarta posições nos crimes mais exibidos pelos programas.

    Se a morte é um valor-notícia eminente para os veículos, os crimes de natureza contra a dignidade sexual carregam uma especificidade: as vítimas costumam pertencer a faixas etárias vulneráveis, especialmente infância e adolescência, com idades entre 3 e 13 anos, muitas vezes sofrendo longos períodos de abuso sexual. Esse tipo de crime está, assim como todos os que envolvem pessoas com laços familiares ou afetivos, entre aqueles que mais produzem sentidos nos telespectadores dos noticiários.

    Na etapa de recepção foi identificada a dificuldade que os telespectadores têm de memorizar os fatos objetivos das notícias, ainda que a estratégia narrativa dos programas seja a de descrever os pormenores dos crimes, com ênfase para as ações dos criminosos e as quase sempre inúteis reações das vítimas. Por outro lado, isso não impede que os respondentes produzam sentidos a partir dos crimes midiatizados. Nesse aspecto, vários participantes citaram situações genéricas quando questionados sobre a lembrança de crimes mostrados pelos noticiários. Episódios que envolvam a instituição família (ou suas derivações, como em crimes cujas vítimas são crianças) foram citados diretamente por dois terços dos entrevistados.

    Essas percepções afetam as visões de mundo dos participantes da pesquisa. Um exemplo extraído da pesquisa dentro dos limites deste texto: quais reações tomariam caso se deparassem, em um local público, com uma pessoa apanhando que estivesse sendo acusada de ter furtado ou roubado uma bicicleta. Eles foram questionados se aprovavam ou desaprovavam a ação dos populares e quais atitudes tomariam. Na sequência, a mesma circunstância foi posta, mas dessa vez a pessoa que sofre as agressões foi apontada pelos populares como autora de um estupro de vulnerável.

    A indiferença pelo desfecho do linchamento, desde que não se trate de um membro familiar ou próximo, foi marca encontrada nas respostas para o furto da bicicleta, ainda que vários entrevistados tenham buscado atenuar o hipotético crime. Porém, quando a acusação muda, as noções de civilidade se perdem. Um dos entrevistados, que acionaria a polícia apenas no primeiro cenário, afirmou que não sentiria nenhum tipo de culpa se o referido  espancamento resultasse em morte em nenhuma das duas situações. Outra não aprova a ideia de que alguém seja agredido por roubar uma bicicleta, fato que a faria acionar a polícia, mas uma interferência só ocorreria se a vítima do linchamento fosse alguém próximo. “Se não fosse um parente meu, eu não iria pôr em risco a minha vida se eles estão batendo, estão quase matando.” A opinião muda drasticamente se o suposto crime envolvesse um estupro de vulnerável: “É uma coisa muito forte, estupro, pedofilia… uma pedrinha eu jogaria ali. Só se tivesse certeza [da culpa] eu participaria”, diz uma das entrevistadas.

    Nessa questão, os entrevistados se dividem entre aqueles que não mudariam de atitude independentemente do crime e entre aqueles que teriam as reações pautadas, sobretudo, pela tipificação do ato criminal ou pela certeza de culpa ou inocência da pessoa em linchamento. No primeiro caso, uma das interlocutoras, pensionista cadeirante, afirma que, se pudesse se movimentar sem restrições, ajudaria nas agressões se tivesse provas. “Primeiro tinha que ter provas. Depois das provas, daí você até ajuda a matar […]. Acho que, se atacasse a minha família, né, daí eu mataria. Por causa de uma família minha, eu mataria.” Há, por outro lado, quem discorde de qualquer forma de justiça pelas próprias mãos. Um dos respondentes diz que violência não combate violência, enquanto outro diz que a polícia é a melhor saída, independentemente do ato criminal. “Porque daí você passa de vítima para agressor.”

    Os demais afirmaram que perderiam a civilidade apenas na situação do estupro de vulnerável. Um deles diz afirma ser impossível não mudar de opinião e de atitude de acordo com os crimes, especialmente pelo aspecto familiar. “Você imagina o que faria pela sua família. Agora imagina, às vezes, a família daquela criança não tá ali ou, mesmo que esteja, a dor que está passando, então nessa hora o cara pode perder a paciência.” Outros dois são mais enfáticos: o primeiro, um policial militar aposentado, frisa que “taradão não tem perdão”, enquanto a segunda, desempregada, diz que há muitas mulheres “à toa aí”, algo compartilhado por outra entrevistada, e que sugere que a violência contra as mulheres seja, até certo ponto, aceitável se posta lado a lado a contra uma criança.

    Pensando em como o público negocia, reinterpreta e reelabora sentidos, outro participante, um agente de escolta armada, assevera que seria o primeiro a atacar o suspeito de crime sexual na situação hipotética. Com base em princípios religiosos, outra participante, uma zeladora e comerciante, relaciona o caráter puro das crianças à reação agressiva: “Deus fala que ninguém chega até ele se não tiver um coração de uma criança, um coração ingênuo, um coração puro”. Ela confessa que, se soubesse que a pessoa tinha cometido algo contra uma criança, mataria essa “pessoa de boa”, ainda que tal atitude não garantisse a ela o “coração ingênuo” necessário para se aproximar dos céus. Outro participante deixa implícito que o fato de ser apenas um roubo de uma bicicleta faria com que tivesse menos animosidade com o suspeito. “Não é um caso de vida ou morte. Foi um roubo de uma bicicleta. E a gente não tem certeza se a bicicleta foi mesmo roubada – ou se era dele ou se não era”. Já outra respondente, aposentada, diz não saber avaliar se a violência resolve e relaciona o fato de ser favorável às agressões com o teor de impunidade inerente à Justiça e valorizado pelos telejornais: “Tem que apanhar mesmo. Não sei, né, se apanhar resolve. […] Só que a polícia vai prender o estuprador, no outro dia a Justiça solta”. Como a questão da justiça pelas próprias mãos é vista por alguns deles como uma forma de reação até certo ponto legítima, haja vista que a Justiça é considerada morosa e, conforme os relatos, condescendente com a impunidade, os respondentes foram unânimes em concordar com uma ideia defendida pelos âncoras dos noticiários: a de que os presidiários têm cada vez mais direitos e menos deveres.

    Quando se pensam nos crimes, o Fantástico tomou uma atitude exatamente oposta à presente nos noticiários criminais estudados, que sobrevalorizam os pormenores dos crimes e acabam por romantizar a violência. O programa produziu uma reportagem sobre segurança pública, e não sobre jornalismo criminal. Buscou humanizar, não estigmatizar. A escolha de Suzy como uma das fontes realmente foi uma infelicidade se for levado em consideração o histórico teor ostensivo com que crimes hediondos são julgados pela sociedade brasileira, além da percepção sobre como esse tipo de crime abala a instituição família; o recorte que omitiu os crimes das pessoas entrevistadas (um deles, aliás, foi identificado como roubo, mas sem detalhar a ação), por outro lado, demonstrou, pelo menos por um tempo, potencialidades de um jornalismo que pode promover diálogo. Sob o ponto de vista jornalístico, parece cada vez mais necessário pensar em protocolos para pautas ligadas à segurança pública, algo que já acontece há longo tempo, por exemplo, quando se pensam em formas de midiatizar suicídios.

    Infelizmente, o foco no crime de Suzy fez com que se ofuscasse a história de outra
    fonte da reportagem. O depoimento de Lolla, de 35 anos, que cumpria os últimos dias
    da condenação por roubo, traz, simultaneamente, alento e preocupação. A esperança por um
    recomeço contrasta com a sensação de falta de liberdade para assumir sua identidade de
    gênero fora do presídio e pela falta de oportunidade no mercado formal de trabalho. Isso exige que Lolla se vista de palhaço nos semáforos para vender água mineral. Como parte do processo de reintegração social dela e da dignidade dessa fatia da população, políticas de crescimento do mercado formal de empregos mereceriam também, no mínimo, um tuíte do presidente.

    Publicado originalmente no Observatório da Imprensa, em 17/03/2020.

  • Desmaio na TV aberta e a “destruição da família brasileira”

    Desmaio na TV aberta e a “destruição da família brasileira”

    Em 17 de fevereiro de 2020, uma mulher desmaiou ao ser informada ao vivo, no programa Cidade Alerta (Rede Record), sobre o homicídio da própria filha. Segundo uma reportagem da Folha de S.Paulo, o programa acompanhava já há alguns dias o caso do desaparecimento de uma moça de 21 anos, grávida. O advogado do ex-namorado da vítima, responsável pela revelação da morte no programa, alegou que seu cliente havia confessado o crime de feminicídio e, inclusive, já teria levado a polícia ao lugar onde havia enterrado o corpo. Surpresa trágica para a mãe, nenhuma para os produtores que, antes da revelação, alegam ter dado à entrevistada a escolha de saber ou não ao vivo o que havia ocorrido com a filha. A consequência da óbvia resposta de uma mãe que não sabia do paradeiro da filha já havia nove dias resultou no desfecho da história.

    O assunto gerou reações de indignação nas redes sociais, dirigidas principalmente ao apresentador, Luiz Bacci, acusado de levar o sensacionalismo a níveis extremos. Longe de eximi-lo de sua parcela de responsabilidade, a decisão do Cidade Alerta não deveria ser personificada, mesmo que o gênero criminal tenha se consolidado no Brasil justamente a partir da forte presença da figura do âncora. É preciso sempre reiterar que televisão é uma atividade produzida em equipe e que a responsabilidade é solidária entre diversos profissionais que permitiram a exibição da fatídica cena, e também com a direção da empresa. Por isso, houve quem voltasse o descontentamento nas redes sociais à emissora, uma concessão pública cuja finalidade deve ser “educativa e cultural, mesmo em seus aspectos informativo e recreativo”¹. Em consonância com essa segunda abordagem, parece inacreditável que a emissora não tenha emitido sequer uma nota sobre o episódio ocorrido e, especialmente, sobre as diretrizes que deveria tomar para que episódios similares jamais tornassem a ocorrer em um dos principais produtos informativos do grupo Record.

    Quem teve que justificar o injustificável nas redes sociais foi o próprio apresentador. Via Instagram, reforçou o desejo da mãe em saber, em tempo real, o que havia acontecido com a filha, bem como alegou ter aprendido com a história, embora não tenha especificado exatamente o que tirou de lição. Um trecho, todavia, chamou a atenção: “as histórias não são conduzidas pela gente, mas por Deus”. Sob a rubrica de que a TV mostra aquilo que o público quer – e agora também o que Deus deseja -, violações éticas se naturalizam dia após dia em coberturas criminais e costumam ser problematizadas, essencialmente, em situações-limite como a exposta no primeiro parágrafo. É preciso reconhecer, por um lado, o esforço de setores sociais, das universidades à sociedade civil organizada, passando pelo campo dos produtores culturais, no estabelecimento de críticas à falta de qualidade na televisão e admitir, por outro lado, que o árduo trabalho, ainda que legítimo e essencial, produza poucos efeitos práticos quando se pensa em melhorias na programação. Este texto carrega essas duas perspectivas como essência: auxiliar na denúncia do episódio e aceitar que tal argumentação nada ou muito pouco sensibilizará os produtores.

    Uma questão de família

    A primeira onda de ataque das elites intelectuais à falta de qualidade na televisão data ainda dos anos 1960, período em que nasce também uma forma de preconceito contra as classes populares: o vínculo entre popularização da televisão e a queda no nível da programação. Segundo esse estigma, as classes populares seriam aficionadas por sangue e por tragédias alheias. Essa percepção cresceu reiteradamente desde a fase de transição para a redemocratização do país. A criação do SBT, em 1981, que retomou atrações da década de 1960 que foram praticamente banidas da televisão nos anos 1970, e a implantação do Plano Real, em 1993, responsável pelo aumento do poder de compra dos brasileiros e, consequentemente, do maior acesso a aparelhos televisores pelos mais pobres, são dois momentos-chave que reforçam o argumento.

    Esse tipo de alegação é defendido por produtores e mesmo por estudiosos de televisão, ainda que haja uma incipiência no país de pesquisas que voltem as atenções de fato para o público². O incômodo com essa situação fez com que o autor do presente texto produzisse uma pesquisa de doutorado no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) com telespectadores de dois noticiários criminais paranaenses (Balanço Geral e Tribuna da Massa).

    Na segunda e última parte do estudo, foram selecionados dezoito telespectadores assíduos dos dois principais noticiários criminais veiculados no Paraná. Essas pessoas deveriam, necessariamente, habitar uma das três regiões com mais crimes exibidos durante a primeira fase da pesquisa, um monitoramento de três meses dos programas (de outubro a dezembro de 2017). Buscou-se problematizar, na etapa de recepção, como essas pessoas produziam sentidos às narrativas criminais na vida cotidiana. Em outras palavras, por que, em síntese, davam credibilidade a programas que exibiam tragédias diariamente.

    As dificuldades que o público tem para memorizar os pormenores dos fatos, algo já identificado em muitas outras pesquisas voltadas ao fenômeno da recepção de conteúdos informativos, foi ratificada. Assim, apesar de assistirem no dia a dia aos programas, essas pessoas não costumam se recordar da maioria dos fatos veiculados. A incapacidade de memorizar a notícia em si, algo que supera questões de classe social, todavia, não impediu que os respondentes produzissem sentidos a partir dos crimes midiatizados. Nesse aspecto, vários participantes citaram situações genéricas quando questionados sobre a lembrança de crimes mostrados pelos telejornais. Episódios que envolvam a instituição família (ou suas derivações, como em crimes cujas vítimas são crianças) foram citados diretamente por dois terços dos entrevistados – houve ainda menções indiretas, como feminicídios, homicídio qualificado que, na maior parte dos casos, envolve vítimas pertencentes ao núcleo de convivência do agressor. A concepção de família, embora não seja a única, articula-se como a principal instituição a ser valorizada no eixo narrativo dos noticiários.

    O vínculo com a noção de família é tão estreito nesses programas que, na pesquisa, foi identificada a presença de um tipo de fonte não usual em outras abordagens jornalísticas. São indivíduos que mesmo sem presenciar o evento criminal ou poder contribuir objetivamente para a resolução do crime foram entrevistados. São parentes ou, no mínimo, pessoas muito próximas à família, que destacam características positivas e negativas na personalidade e no convívio social de, respectivamente, vítimas e agressores. Esse tipo de fonte aparece essencialmente nos noticiários enfatizando a “destruição da família” (não qualquer família, e sim aquela representada em comerciais de margarina), algo que ajuda a ratificar o argumento de que há produtos noticiosos que corroboram o princípio de que haja uma crise de valores na família. As consequências não são animadoras e, inclusive, ajudam a entender a aceitação de discursos entusiastas sobre a liberação da posse e do porte de armas de fogo, excludente de ilicitude, entre outras iniciativas contemporâneas relativas à segurança pública.

    A percepção iminente de risco à família faz com que essas narrativas produzam sentidos relevantes para parte dos entrevistados. As citações sobre família foram marcantes nas quase vinte horas de depoimentos, independentemente da recordação de eventos de violência. Alguns exemplos: “É o pai que mata o filho, é a filha que mata a mãe, é o neto que mata a avó pra pegar dinheiro”, disse um dos entrevistados. “As pessoas entrarem nas casas para matar um, dois, três… Filho matar o pai, onde é que se viu?”, completou outro. “Pai de família morre, direitos humanos não vão lá na casa dele não, mas se um policial matar um sem-vergonha em ponta da esquina, tão lá os ‘direitos dos manos’ em cima”, avaliou um terceiro entrevistado, que usa uma expressão corriqueiramente citada pelo apresentador do Tribuna da Massa, o programa preferido na hora do almoço pelo participante.

    Mesmo os temas que, a princípio, não estariam vinculados à concepção de família, aproximaram-se dela conforme as entrevistas avançavam. Tragédias no trânsito despertam a atenção de uma das entrevistadas, que teve o filho e o ex-marido mortos em acidentes: “Como tenho problemas de acidente na família, não gosto muito de ver acidente, mas assisto”. Situações de violência contra motoristas do aplicativo de transporte Uber são citadas como as que mais comovem outra participante do estudo. Ainda que seja uma força de expressão, já que durante o monitoramento não tenha havido nenhuma notícia envolvendo motoristas do serviço como vítima, a noção dela de que crimes contra esses condutores são diários tem mais relação com o próprio dia a dia do que com a exibição. No fundo, ela assiste ao noticiário essencialmente devido à percepção de risco que o marido enfrenta durante o trabalho. Um último exemplo: a mais nova entrevistada na pesquisa, à época com 17 anos, afirma que passou a acompanhar um dos noticiários inspirada na família de uma amiga do Ensino Médio que visitava com regularidade. Ela, que garantiu pertencer a uma família desestruturada por conta do vício em álcool do pai, percebia a família da amiga unida em torno do sofá e passou a adotar o hábito. O ato em nada tinha a ver com gostar de sangue, e sim com uma idealização de família.

    Os programas criminais dialogam com a família

    Surge também, na década de 1960, uma mudança de concepção no modo de se pensar televisão, que passou a ser considerada como uma esfera de relacionamento em detrimento ao caráter formativo hegemônico na programação dos anos 1950, período em que parte da elite intelectual do país criava expectativas positivas em relação ao então novo meio de comunicação. Essa descoberta foi essencial para que a televisão conseguisse desenvolver estratégias para engajar audiência. A transformação foi causada pela compreensão de como a tecnologia deveria se conciliar à vida cotidiana do público. De um produto experimental, responsável pelo acesso à cultura erudita, a televisão passou a se vincular à vida da maior parte da população.

    Entendida como um meio para ser consumido coletivamente, a televisão criou uma lógica na qual a programação passou a ser pensada, como explica Alexandre Bergamo, “a partir da sua gradativa adaptação à ‘rotina familiar’ e, principalmente, a partir de uma divisão de ‘horários’ que buscasse uma melhor articulação entre o trabalho e o lazer”. Vista até então como uma atividade de lazer noturna, a televisão passou a se adaptar à vida cotidiana do público, algo que, até certo ponto, inverte-se nas décadas seguintes após a consolidação do meio como integrante da rotina dos brasileiros de várias classes sociais.

    Ainda que os noticiários criminais sejam alvo de constantes e merecidas críticas, é inegável o poder que esse gênero tem de criar processos de identificação, sobretudo a partir da lógica familiar. A disseminação de preconceitos e a violação de direitos humanos proliferadas por noticiários criminais, conforme aponta uma pesquisa organizada pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi), foram incapazes de afetar o êxito editorial desses programas.

    Da filha de classe média alta que, com a ajuda do namorado e do irmão dele, assassina os pais aos genitores que defenestram a filha de um prédio, a noção de destruição da lógica familiar cria engajamento, logo, audiência. Por falta de identificação e por preconceitos enraizados na sociedade, crimes em regiões periféricas envolvendo negros, homossexuais e outros grupos marginalizados costumam ser ofuscados nas coberturas. Ganham notoriedade tão somente quando carregam em si algo a mais, como a deixa para transmitir ao vivo o anúncio do falecimento de uma filha à mãe.

    O contato diário com os programas criminais contribui de forma estruturante para visões de mundo nada progressistas dos entrevistados. As noções de justiça pelas próprias mãos, de apologia à violência policial e de incentivo a regimes de humilhação à população carcerária são hegemônicas dentro do grupo de entrevistados. Argumentos estruturados pelos discursos ligados à concepção de família.

    Um dos expoentes dos Estudos Culturais britânicos, Stuart Hall escreveu uma frase instigante: “O cão, no filme, pode latir, mas não consegue morder!”. Se o cão for representado por quem, com toda boa intenção, critica a televisão, infelizmente a frase é verdadeira. Caso sejam os produtores de noticiários criminais abordando a famigerada “tragédia da família brasileira” e ditando pensamentos retrógrados, a frase ganha contornos de ficção.

    ¹ Decreto nº 52.795, de 31 de outubro de 1963. Acesso em: 23 fev. 2020.
    ² Os esforços do Núcleo de Pesquisa Recepção e Cultura Midiática, coordenado pela professora Nilda Jacks na UFRGS, demonstram o baixo número de pesquisas de pós-graduação de recepção midiática no país. As investigações voltadas à recepção de produtos jornalísticos, praticamente inexistentes nos anos 1990, com duas dissertações, atingiram a marca de 54 trabalhos no período entre 2000 e 2009. Entre 2010 e 2015, o número já havia atingido 46 pesquisas (43 de mestrado e três de doutorado).

    Publicado originalmente no Observatório da Imprensa, em 26/02/2020.

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